Como a liberdade de expressão dentro da PM pode reduzir a violência, segundo esta ONG

‘Mordaça’ aos policiais impede alteração de procedimentos inadequados e maior aproximação com a sociedade, afirma relatório da Human Rights Watch


FOTO: ANDRÉ GUSTAVO STUMPF/FLICKR/CREATIVE COMMONS





O Brasil convive com ações graves e questionáveis envolvendo as suas polícias militares — entidades de segurança de responsabilidade de cada uma das 27 unidades federativas do país. 

Ainda assim, seja em episódios extremos, como o massacre do Carandiru, em São Paulo, seja em práticas diluídas (resultando, por exemplo, nas mais de 23 mil mortes de jovens negros a cada ano), a conduta dessas corporações enseja poucas críticas e análises internas. 

Segundo a ONG Human Rights Watch, que apresentou nesta quinta-feira (9) um relatório sobre o tema, isso acontece porque oficiais e praças estão submetidos a um rígido sistema legal de cerceamento à liberdade de expressão. O documento sustenta que dar voz aos subordinados que trabalham nessas corporações leva a reavaliações de procedimentos e pode resultar na redução da violência. 

Dessa forma, o procedimento da PM com bombas de gás lacrimogêneo ou balas de borracha em manifestações, por exemplo, poderia ser modificado caso os policiais envolvidos fossem consultados e eventualmente divergissem da prática. 

Maria Laura Canineu, diretora do escritório brasileiro da ONG, explica ao Nexo que há três mensagens principais que podem ser extraídas do relatório. São elas: 


  • O Brasil, que chegou ao índice “perigoso” de 60 mil homicídios por ano (32,4 homicídios para cada 100 mil pessoas, a nona maior taxa do continente) precisa recorrer a outras formas de fazer segurança pública.
  • A legislação e os códigos “retrógrados” que disciplinam a atividade dos policiais devem ser reformados, para que haja clareza sobre os limites de sua liberdade de expressão. 
  • As polícias militares, atualmente, não têm mecanismos próprios para discutir com mais profundidade questões de trabalho, além de denúncias internas. 



Para os pesquisadores, as punições “excessivamente severas” a agentes que questionam determinadas abordagens — que incluem expulsão da polícia e até detenção — “têm um grave efeito inibidor em outros membros da força, que frequentemente se abstêm de expressar sugestões ou opiniões sobre reformas da polícia por medo de represálias”. 


Direito a falar e a opinar 


Se os policiais militares, que estão na linha de frente da segurança pública por realizarem trabalhos ostensivos na rua, não têm o direito de se expressar sobre a sua atividade e de propor mudanças, qualquer reforma da segurança será ineficiente. Essa é a interpretação de Canineu acerca do emaranhado de restrições que hoje cala esses agentes públicos. “Se eles não podem participar do debate, o que estamos discutindo?”, questiona a pesquisadora. 


Quais são as restrições 


Embora os 436 mil policiais militares brasileiros na ativa respondam administrativamente ao governo do Estado em que servem, também vinculam-se ao Exército, pois são considerados integrantes das forças de reserva. 

Por essa razão, eles estão sujeitos à legislação que orienta a conduta das Forças Armadas. O Código Militar Penal vigente, criado em 1969, em plena ditadura militar, é enfático sobre os limites ao direito dos militares de externar opiniões e julgamentos: 


  • Artigo 155: Estabelece que “desobediência” e “indisciplina” podem levar a reclusão de dois a quatro anos; 


  • Artigo 163: Institui que “promover a reunião de militares, ou nela tomar parte, para discussão de ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar” dá detenção de até um ano; 


  • Artigo 166: Prevê que criticar “publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do governo” resulta em pena de detenção de dois meses a um ano. 



Além dessa normativa federal, existem códigos disciplinares estaduais que estipulam regras para a PM de cada unidade federativa (Brigada Militar, no caso do Rio Grande do Sul). No Estado de São Paulo, que possui o maior contingente de policiais militares do Brasil — em torno de 100 mil pessoas —, o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, de 2001, estipula como transgressões disciplinares graves situações como: 


  • “publicar, divulgar ou contribuir para a divulgação irrestrita de fatos, documentos ou assuntos (…) que possam concorrer para o desprestígio da Polícia Militar”; 


  • “não cumprir, sem justo motivo, a execução de qualquer ordem legal recebida”; 


  • “recriminar ato legal de superior ou procurar desconsiderá-lo”. 



Clareza sobre os limites à liberdade de expressão 


Como lidam com a segurança pública e com estratégias de prevenção de crimes, os agentes devem ter cautela sobre o que divulgam no que tange a planos e políticas da área. Canineu avalia que eles não podem ficar impedidos de expor as suas próprias dúvidas e interpretações a respeito do sistema em que trabalham. 

Sobre o código disciplinar de São Paulo, a especialista questiona o que seria exatamente publicar ou divulgar assuntos que possam levar ao “desprestígio” da PM. “O que é desprestígio? Se um policial denuncia um colega por um crime ou um abuso, isso não pode ser interpretado como um desprestígio à corporação? No limite, ele poderia ser punido por isso.” 

A “mordaça” é tão mais preocupante pois incide justo sobre quem faz o policiamento ostensivo, uma atividade que no Brasil compete à PM, embora seja de natureza eminentemente civil. Ou seja, os profissionais que lidam cotidianamente com as ruas têm reduzida margem para questionar condutas que considerem ineficazes ou erradas. 


Casos de punições a agentes que se manifestaram 


A Human Rights Watch compilou informações sobre policiais militares brasileiros que foram punidos por expressarem suas opiniões a respeito das instituições em que trabalham. Segundo a ONG, as penas foram “desproporcionais” aos atos que praticaram.

De acordo com o relatório, em 2008 o policial Darlan Abrantes, do Ceará, publicou um livro em que critica a estrutura da PM, na qual “ao policial de baixa patente não é permitido pensar”. 

Ele também defende que tornar a instituição civil a aproximaria mais da população, o que reduziria a criminalidade. Em 2014, o comando geral da PM cearense o expulsou sob a alegação de que a publicação continha “graves ofensas” e que Abrantes havia demonstrado “total indisciplina e insubordinação”. 

Na Justiça militar, ele foi condenado a dois anos de reclusão, mas a pena foi suspensa desde que ele se comprometesse a “não voltar a delinquir, não ingerir bebidas alcoólicas, não frequentar casas de jogos ou tavolagem, não portar armas de fogo ou armas brancas e comparecer ao tribunal uma vez por mês”. 

No Pará, o PM Luiz Fernando Passinho afirmou à ONG que tem sido perseguido pelo comando da polícia porque, em setembro de 2014, disse em um microfone durante o ato do “Grito dos Excluídos”, que “durante seus treinamentos, bombeiros e policiais militares escutam que não têm direitos”. 

Segundo a Human Rights Watch, o comandante-geral interpretou que Passinho “atentou contra a disciplina e a hierarquia militar ao se manifestar de modo a colocar no seio dos quartéis a discórdia e a desmoralização contra seus superiores”. 

O relatório diz que o comandante “ordenou a detenção de Luiz Fernando por 30 dias em outubro de 2016. Luiz Fernando apelou da decisão ao mesmo comandante que a ordenou, conforme procedimento previsto pelo código disciplinar estadual”. 

Em setembro do ano passado, os superiores ordenaram a sua detenção “por não ter usado chapéu enquanto estava com o uniforme”, punição “normalmente punida com uma advertência”. 

No Congresso, já existem propostas para apartar a PM do Exército, eliminando as detenções administrativas. De acordo com o relatório da Human Rights Watch, essas reformas “resultariam em um policiamento mais efetivo e responsável perante a sociedade”. Entre as proposições, existem as que defendem a desmilitarização da polícia e as que preveem alterações nos códigos disciplinares. 


O que pensa um policial militar 


Na avaliação do policial militar da reserva Jason Maurício Santos, secretário-geral da AOPP (Associação dos oficiais, praças e pensionistas da Polícia Militar do Estado de São Paulo), os agentes já têm, hoje, condições de pleitear mudanças internamente. 

De acordo com ele, a Polícia Militar é uma instituição que já dá acesso “aos subordinados de todos os círculos” para que possam apresentar sugestões ou fazer alguma solicitação. 

“Obviamente, afrontar a legislação e os códigos de conduta não é permitido. Quando o policial ingressa na carreira, durante o período de treinamento para a formação técnica e profissional, recebe essas informações e faz um juramento de cumprir as ordens recebidas das autoridades mesmo que seja com o sacrifício da própria vida”  
(Jason Maurício Santos Secretário-geral da associação dos oficiais, praças e pensionistas da PM de São Paulo)

As entidades de classe, como a AOPP, embora não sejam sindicatos (já que a lei proíbe que militares se sindicalizem e participem de greves), também servem para levar demandas dos subordinados às autoridades de segurança pública.

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