A força da capoeira como fator de identidade afrodescendente no Brasil

Ilustração: a pintura de Tiana Martins.

O famoso canto entoado nas rodas pelo Brasil diz: “Zum zum zum..., capoeira mata um”. E ele de fato faz jus aos sentimentos que esse misto de dança, jogo e luta sempre causou, principalmente nas elites brasileiras. A capoeira é uma prática que sempre aterrorizou a população pela eficácia que representava quando usada por um negro destro e habilidoso. São muitas narrativas durante as diversas fases do Brasil colônia que expressam o medo do que era tido como uma grande e poderosa arma dos escravos, que poderia de alguma forma ameaçar a autoridade do sistema escravista. Prova disso é que não faltaram leis proibindo a prática.

A vadiagem como figura jurídica seria introduzida no código penal de 1890, provavelmente atendendo ao objetivo de manter ex-cativos atrelados ao sistema de trabalho com regime de baixos salários, próximo ao que vigorava durante a escravidão. Nessa mesma lei estava a proibição da prática da capoeira, prevendo punição a quem fosse acusado de “ociosidade e prática de exercícios de agilidade e destreza corporal”.

Mais tarde a luta passa a estar relacionada às famosas maltas, bandos formados por praticantes de capoeira que ficaram conhecidas por protagonizarem vários episódios de desordem pública, muitas vezes atendendo a finalidades políticas, pois muitas figuras da vida pública do Império empregavam esses praticantes e os utilizavam principalmente em períodos eleitorais. Por isso, a capoeira também ficaria relacionada a certos costumes próprios do período imperial, que passaram a ser abominados a partir da república.

Mas já no alvorecer do novo século a capoeira passa a ser vista a partir de outra perspectiva. O medo do praticante e a suposta agressividade da luta dão lugar ao reconhecimento das altas habilidades que o capoeira precisa ter, afinal trata-se de uma disputa em que teoricamente um lutador poderia derrotar seu oponente sem sequer aplicar um golpe, apenas usando a astúcia adquirida pela prática. Quando se torna popular e admirada pela população, ela cai também no gosto de alguns intelectuais, que enxergam na velha luta oriunda dos negros, segundo alguns de cultura angola, um importante traço de identidade nacional. Começam então a aparecer nos jornais e revistas do país vários artigos falando do assunto. São produzidas também interessantes explicações para a formação da técnica utilizada pelo lutador, que a desvinculam da origem africana e a colocam como uma demonstração da mestiçagem nacional, unindo as três raças formadoras.

Em alguns autores é possível encontrar uma ligação entre um certo lisboeta típico e a figura do malandro carioca. É o caso do historiador da música brasileira José Ramos Tinhorão que, ao falar sobre o rasga, uma dança popular no Rio antigo a que atribui a origem negro-portuguesa, afirma que os “fadistas” lusitanos, trabalhadores portuários que estão ligados à origem do mais tradicional estilo musical português, também teriam contribuído ao lado dos negros para desenvolver a técnica da luta. Essas visões naturalmente ignoram o longo tempo em que a capoeira foi praticada e aperfeiçoada nas senzalas e engenhos do Brasil muito antes da chegada das levas de portugueses que no final do século XIX chegariam ao Rio de Janeiro.

Mesmo assim, acaba sendo reconhecida como fundamentalmente brasileira, sendo colocada no mesmo patamar de outras lutas nacionais, como o box inglês ou o jiu-jitsu japonês. Os anos iniciais do século XX haveriam de retomar essa parte importante de nosso passado, buscando agora certas nuances que de alguma forma são úteis do ponto de vista de um discurso de integração nacional. Dessa forma, reconhecer a capoeira como um patrimônio brasileiro e associá-la à contribuição dos afrodescendentes para a cultura nacional serviu à construção de um discurso integrador, que foi usado nos primeiros anos do século XX e depois intensamente explorado pela ideologia do Estado Novo. Após um processo gradual de reconhecimento da capoeira como uma atividade nacional ao longo do século XX, é publicado em 1973 o Regulamento Técnico da Capoeira, ato que a oficializa como “Esporte Nacional Brasileiro”.

Hoje a capoeira ganhou o mundo anunciada como uma arte genuinamente brasileira, fruto direto da contribuição do africano para a cultura nacional. Leva para as rodas de todo o planeta outro símbolo nacional, a língua portuguesa, usada para ensinar aos aprendizes da luta os nomes dos golpes e também para batizar cada um dos aspirantes a capoeiristas, o que os leva a pelo menos travar contatos iniciais com a língua que um dia foi de Camões. Lutadores ilustres são chamados de mestres e representam um importante setor, que agrega esporte, cultura e educação, muito distante do estigma da vadiagem que um dia esteve associado aos praticantes da luta.


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