Um país chamado Canudos, 120 anos depois

Artigo especial[1] do cientista social Ruben Siqueira, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), recorda e atualiza a luta de Canudos, que até hoje é a maior mobilização do exército brasileiro: contra o povo. Nem mesmo a Guerra do Paraguai ou a Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra superaram o envolvimento de tropas como no combate à rebelião liderada por Antônio Conselheiro. A violência, pública e privada, continua uma marca da vida nacional, multiplicam-se as mortes nas cidades e nos campos, o Brasil sendo hoje o mais violento país do mundo sem guerra declarada, uma guerra contra os pobres.


“A mensagem de Canudos fica cada dia mais atual e necessária. Atravessa os tempos e faz seguidores a ousadia dos conselheiristas, de recriar, nas entranhas do latifúndio respaldado pela República, a comunidade dos primeiros cristãos, onde a única lei era a do amor, pela qual — ainda que entre eles houvesse comerciantes bem-sucedidos — os bens eram partilhados em benefício de todos. A bandeira fincada para sempre no coração do Brasil continua a atrair os pobres e desvalidos. Porque lhes ensina a única lição possível: a eles só resta resistir e insistir na vida, contra os poderes da terra, porque — dizia Antônio Conselheiro — ‘só Deus é grande’. É essa fé, de um povo que não separa religião e vida, crença e luta, que move ainda hoje centenas, milhares, milhões de brasileiros pelos vastos sertões deste latifúndio chamado Brasil, a lutar pela terra e pelo direito à vida digna na terra.”

Mulheres e crianças aprisionadas em Canudos; homens foram todos mortos




Leia o artigo na íntegra:

Canudos virou moda há 20 anos, em seu centenário. Houve enorme expectativa à época com o lançamento do filme de Sérgio Rezende, Guerra de Canudos (assista aqui), que foi, rodado na região. Teses, livros, reportagens e seminários foram feitos para a celebração dos 100 anos e continuaram a ser produzidos, trazendo releituras do episódio, discutindo aspectos novos, alimentando a infindável polêmica. O governo da Bahia criou no cenário da guerra o Parque Estadual de Canudos, onde uma equipe da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) realizou estudos de arqueologia histórica. Neste outubro de 2017, vários eventos, sobretudo promovidos por movimentos e entidades sociais, estão acontecendo na pequena cidade herdeira da Canudos conselheirista.


A atualidade de Canudos

120 anos é data por si mesma expressiva, seja do que for. Mas, em Canudos, o quê exatamente se está comemorando? O que tem esse episódio, o que ele encerra — esconde e revela — que atrai tantas atenções?

É que em Canudos, ontem e hoje, o Brasil se vê face a face consigo mesmo, encontra seu desencontro. Canudos não está na memória nacional apenas como uma chaga, a mais ignominiosa das lembranças do passado, onde e quando se detonou toda a carga de violência que mal se esconde sob o manto roto da decantada cordialidade brasileira, praga ideológica que sedimenta a assimetria das relações sociais. Está também como repetição, reincidência, contínuo revisitar. Está como matriz da identidade brasileira e chave de explicação do País e de seu infortúnio como nação moderna, que nunca alcançou de fato a modernidade. Está, pois, como atualidade, contemporaneidade.

Uma primeira prova disso? Ao implantar-se o Parque Estadual de Canudos, por ocasião do centenário, famílias de agricultores residentes na área, muitas delas descendentes dos antigos canudenses, tiveram que resistir à implantação das cercas divisórias do parque porque estas inviabilizavam o criatório de cabras, sua principal fonte de subsistência… Talvez até quisesse o governo da Bahia que se retirassem de vez, para não estragar a composição nostálgica e folclórica do quadro… Ainda bem que os cientistas da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) não embarcaram nessa…

Canudos levanta questões que incomodam a má consciência nacional. Por que mais da metade do efetivo e todo o aparato militar do exército à época foi mobilizada em cinco expedições contra pobres e frágeis camponeses, armados de poucas espingardas e muita fé? Por que ali, numa das regiões mais secas do País, uma multidão de 25 mil destes deserdados encontrou um lugar e construiu, sob a liderança do beato Antônio Conselheiro, a maior cidade do interior do Brasil à época?


São perguntas cujas respostas foram por quase cem anos evasivas e tendenciosas, justificativas fáceis, ao menos as da historiografia oficial — como as do messianismo fanático, do monarquismo rebelde, antirrepublicano confesso, da desordem e do banditismo. Perguntas e respostas antigas e novas volta e meia vêm à tona, não só quando arredondam-se as datas, mas igualmente quando, ainda hoje, o mesmo monstro da violência pública, estatal e/ou privada, mostra as garras contra os pobres — desempregados, moradores de rua, indígenas (às vezes, estes confundidos com aqueles), negros e pardos, mulheres, crianças abandonadas, encarcerados ou simples transeuntes à noite nas periferias e favelas. Quando “razões de Estado” (o Leviatã?) massacram sem- terra e sem-teto pelas mãos da Polícia Militar…

Afinal, o que esses pobres desvalidos, aos molambos pelas estradas e ruas do País, podem representar como ameaça à ordem estabelecida, intrinsecamente desigual, e justificar tão absurda violência pública, radicalizada de maneira inédita depois do golpe de 2016? Eles são de fato a única ameaça com real poder de subverter a lógica do sistema e transformá-la: os alijados, mal-servidos e descontentes, os que não têm mais nada a perder.

Foi gente assim que gerou Antônio Conselheiro e constituiu, em Canudos, uma tentativa de sociedade diferente, uma alternativa àquilo que o País lhes negava, mais justa e igualitária, pelo menos onde se sentissem e fossem alguém.



Encerramento da 30ª Romaria de Canudos, no último domingo (22).
Foto de Tiago Aragão – CPT-BA
É por demais sintomático que o maior envolvimento bélico brasileiro da história tenha acontecido contra o próprio povo e não na Guerra do Paraguai ou através da gloriosa Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra, como quer acreditar a história oficial. A vitória final sobre Canudos é celebrada até hoje pelo Exército Brasileiro como data da sua modernização, quando foi usado pela primeira vez um canhão de repetição, a “matadeira”, como diziam os canudenses. Os pobres são o “inimigo interno”, muito mais perigoso.


A base latifundista do poder explica aquele e outros Canudos

Em meados do século XIX, o negócio do tráfico de escravos africanos, que fora a base do comércio internacional e da empresa colonial portuguesa, já não era mais compensador, com o advento do industrialismo e do capital industrial. Antecipando-se à iminente abolição da escravatura (o Brasil foi o último país a aceitá-la e proclamá-la), as oligarquias agrárias ascendentes —versão atualizada dos sesmeiros, que tinham sido a classe dominante da Colônia Portuguesa— trataram de criar a Lei de Terras, em 1850. À parte pretender a colonização de terras públicas —como muitos países à época, em especial os Estados Unidos da América—, na prática a lei promoveu sua apropriação privada fraudulenta e fortaleceu o latifúndio, ao decretar que a terra, antes doação da Coroa, passasse a ser adquirida por compra. Desse modo, ex-escravos indígenas, negros e camponeses pobres (moradores, agregados, rendeiros e toda sorte de lavradores não-proprietários), os “trabalhadores livres”, recém-libertos, foram mantidos afastados da propriedade da terra e do direito de propriedade, da cidadania que, na sociedade capitalista, nele se assenta. Foi essa a gente que “inventou” Canudos.

Ao final do século, a República estava madura e foi proclamada como expressão da nova ordem, que perpetuava o poder das elites proprietárias, recicladas nos “ideais republicanos”. Há quem defenda que Canudos deu à nascente e titubeante República a oportunidade de, pelo violento massacre, afirmar-se definitivamente. Para tanto valia a estigmatização dos conselheiristas como fanáticos monarquistas.

Nascido sob o signo do latifúndio, o Brasil nunca se livrou dele, do que representa como sistema político em que a sociedade é criada, dominada e instrumentalizada pelo Estado patrimonial e clientelista. Como diz José de Souza Martins, “a propriedade latifundista da terra se propõe como sólida base de uma orientação social e política que freia, firmemente, as possibilidades de transformação social profunda e de democratização do País”[2].

À concentração da propriedade da terra equivale a concentração do poder econômico, político, social, cultural em mãos de poucos e a consequente exclusão das maiorias empobrecidas, tidas como partícipes do Brasil mas na condição de “cidadãos de segunda categoria”, às quais se têm sistematicamente negado os reais direitos da cidadania. Ainda hoje é assim, vide a “bancada ruralista”, a mais expressiva base parlamentar de sustentação do governo golpista de Michel Temer. Basta ver as levas de desempregados e desprotegidos sociais jogados a cada dia pelos campos e ruas, em nome da “austeridade” e do “equilíbrio financeiro do Estado”.

As revoltas populares que sempre eclodiram no campo (e na cidade), desde o período colonial, testemunham a sistemática da exclusão. Guardadas as devidas distâncias no tempo e no espaço, sempre estiveram presentes as condições históricas que produziram Canudos e, depois (para não falar de antes), Contestado (fronteira Paraná/Santa Catarina, 1912- 16), Revolta do Sudoeste do Paraná (1957 — há 60 anos!). Igualmente, Trombas e Formoso (Goiás, 1948-64), Caldeirão (Ceará, 1926-36), Pau de Colher (Bahia, 1936-38) e, num outro patamar de organização política, as Ligas Camponesas (Pernambuco-Paraíba, 1954-64). Mais recentemente, os movimentos das ocupações de terra, como o MST, e episódios “a la Canudos”, como Corumbiara (Rondônia, 1995) e Eldorado dos Carajás (Pará, 1996). Todas elas manifestações camponesas pela terra e por condições de vida digna na terra. Todas duramente reprimidas.

É uma chacina. Levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de outubro de 2017 indica que, entre 1985 e 2017 ocorreram nada menos que 45 massacres no campo brasileiro, com 214 assassinatos em nove Estados do país –são considerados massacres com três ou mais mortes na mesma ocasião.

Os números da violência no campo em 2016, depois do golpe sob a liderança comum do capital financeiro e dos ricos do campo são dramáticos, conforme dados da CPT:
  • 61 assassinatos, mais de 5 por mês (entre as vítimas, 16 jovens de 15 a 29 anos, 01 adolescente e 06 mulheres). No quadro dos últimos 25 anos, número superior a esse só em 2003, com o registro de 73 assassinatos;
  • 79 ocorrências de conflitos por terra (ações em que há algum tipo de violência – expulsão, despejo, assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte, prisões etc). É o número mais elevado nos 32 anos de registros da CPT;
  • 295 conflitos por terra no total (soma de ocorrências, ocupações, retomadas, acampamentos): média de 3,8 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2006;
  • 172 conflitos pela água, número mais elevado desde quando a CPT iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002;
  • 536 conflitos no campo (soma de conflitos por terra, pela água e trabalhistas): média de 4,2 conflitos por dia. Número mais elevado desde 2008.

Em 2017, até o momento, somam-se 63 destes assassinatos, sendo a metade (31) em massacres.

São lutas de ontem e de hoje, as mesmas. Sinais, às avessas, da capacidade de resistência, combatividade e utopia dos trabalhadores rurais brasileiros.

Passam os anos, viram-se séculos, a República passa de Primeira para Segunda, de Velha para Nova, da Nova para o regime de restrição brutal à democracia, com o golpe 2016; alternam-se ditaduras e democracias, militares e civis; os social-democratas tornam-se neoliberais; os neoliberais se assumem conservadores e até a ultradireita dá as caras… E a questão social continua sendo tratada como “caso de polícia”, quando não de “segurança nacional”.

E ao desejo popular de vida digna, participação e cidadania responde-se, como em 1897, com a força bruta. Porque é a única que consegue dar solução sem resolver o problema fundamental: solução final, extermínio —como fizeram os nazistas de Hitler, como antes os degoladores dos canudenses aprisionados, como hoje a PM… Segundo o antropólogo Alfredo Wagner, os massacres de índios, posseiros e sem-terra — os “bósnios” do Brasil, prejulgados e condenados à “limpeza étnica” — estão a ritualizar a passagem da chacina ao genocídio. [3]

Canudos revisitado pelas vítimas

Não é apenas como massacre fundamental da “terra-mãe gentil” que Canudos é lembrado. Há quase 40 anos, desde o início dos anos de 1980, há na região um movimento pelo resgate e atualização da mensagem de Canudos. Vencendo o preconceito e o medo, a população remanescente, por meio das organizações sindicais, associativas e pastorais, vem recuperando ao longo do tempo a experiência bem-sucedida de vida social e produtiva adaptada ao semi- árido.

Há revelações da pesquisa história que sepultam a “ideologia da incompetência” com a qual busca-se desmoralizar os pobres. Estudo arqueológico realizado pela Uneb na região de Canudos em 1996 indicou: “Aparentemente sitiados pelo exército, os canudenses contaram na realidade, durante toda a campanha militar, com o eficaz sistema de produção e abastecimento, o que nos indica importantes facetas da sabedoria sertaneja e sua forma própria de encarar a vida e o tempo”[4].

A mensagem de Canudos fica cada dia mais atual e necessária. Atravessa os tempos e faz seguidores a ousadia dos conselheiristas, de recriar, nas entranhas do latifúndio respaldado pela República, a comunidade dos primeiros cristãos, onde a única lei era a do amor, pela qual — ainda que entre eles houvesse comerciantes bem-sucedidos — os bens eram partilhados em benefício de todos. A bandeira fincada para sempre no coração do Brasil continua a atrair os pobres e desvalidos. Porque lhes ensina a única lição possível: a eles só resta resistir e insistir na vida, contra os poderes da terra, porque — dizia Antônio Conselheiro — “só Deus é grande”. É essa fé, de um povo que não separa religião e vida, crença e luta, que move ainda hoje centenas, milhares, milhões de brasileiros pelos vastos sertões deste latifúndio chamado Brasil, a lutar pela terra e pelo direito à vida digna na terra.

Só uma verdadeira reforma agrária e agrícola, a que nunca foi feita, aquela que definitivamente democratize o direito de propriedade e abra caminho para a efetivação dos demais direitos da cidadania — que não são concessões mas conquistas — poderá evitar que outros “Massacres de Canudos” se repitam. Embora Canudos continue para sempre a chaga que dói no peito do Brasil.

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[1] O artigo é uma atualização do publicado sob o título “Um Brasil chamado Canudos”, in Tempo e Presença, nº 295, set/out de 1997. Pgs. 27-31.
[2] Martins, José de Souza. O poder do atraso — ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec. 1994, p.12 
[3] Massacre, rito de passagem ao genocídio, in: Pastoral da Terra, nº 143, Goiânia, CPT. Jun. 1997, p. 10-11. 
[4] Arqueologia história de Canudos. Salvador: Uneb. 1996.

Drogas, capitalismo e política (4): não serás reprimido

Indústria farmacêutica, que lucra muito com epidemia mortal de opioides nos EUA, tem um parceiro de luxo. O Estado, que reprime certas substâncias, fecha os olhos para outras…


Por Paulo Pereira* - Via Outras Palavras




MAIS:Leia a primeira parte, a segunda parte e a terceira parte desse thriller acadêmico.



Após transitar por overdoses em Toronto (1º texto) e entender o contexto mais amplo do abuso de opioides no Canadá e nos Estados Unidos (2º texto), investiguei o papel da corporação farmacêutica transnacional Purdue Pharma nessa crise (3º texto). Na terceira parte da investigação destaquei a importância da criação e comercialização do medicamento Oxycontin, produzido desde meados dos anos 1990, na evolução do abuso de opiáceos semissintéticos e opioides no Canadá e, principalmente, nos Estados Unidos.

A trilha dessa trama desembocou, finalmente, no que percebi como o epicentro da investigação: a Agência de Controle de Alimentos e Drogas (FDA), uma das agências federais do ministério da Saúde dos Estados Unidos. É dela que trata esse texto.

A FDA, um órgão político e técnico, é um dos principais responsáveis pelo controle das drogas nos Estados Unidos, estabelecendo critérios de regulação para diferentes tipos de produtos, incluindo medicamentos. Assim, uma das hipóteses que formulei foi a de que o rápido espraiamento do OxyContin e similares não poderia ter sido realizado sem o consentimento da FDA.

Essa ideia rapidamente se comprovou, já que a FDA, como agência executiva do governo estadunidense, não só aprovou o OxyContin na década de 1990, como renovou sua licença regularmente ao longo dos anos e não demandou restrições na sua forma de distribuição ou produção. E o mesmo pode ser dito da Health Canada, a similar da FDA no país, que aprovou em 2012 a forma genérica do OxyContin, mais fácil de inalar ou injetar. A ministra da saúde canadense à época, Leona Aqlukkaq, no entanto, eximiu-se de qualquer responsabilidade pela crise dos opioides no país, afirmando que a lei não permite ao órgão reter a aprovação de uma formulação qualquer “apenas por causa do risco de uso indevido”.

Na contramão dessa avaliação, no entanto, surpreende a declaração do ex-comissário executivo da FDA entre aos anos 1990 e 1997, David Kessler, para quem “a FDA tem responsabilidade, as companhias farmacêuticas têm responsabilidade, os médicos têm responsabilidade. Nós não vimos essas drogas por aquilo que elas realmente eram.”

Nessa mea-culpa, o argumento do “erro” e da “incompetência” dificilmente são suficientes para explicar a situação atual. Na verdade, essa narrativa tende a encobrir uma série de interesses de mercado, individuais e coletivos, sustentados por decisões políticas que viabilizaram a crise de uso e abuso de opioides, impedindo, além disso, a compreensão de dinâmicas estruturais de funcionamento do controle de drogas nos países.


Logo da Agência de Controle de Alimentos e Drogas (FDA) dos EUA





O trâmite de aprovação do OxyContin pela FDA na década de 1990, por exemplo, continha fatos no mínimo surpreendentes. Por exemplo, em 1989 já havia fortes indícios de que o medicamento não tinha a duração prevista (12h) desde os primeiros testes clínicos em mulheres porto-riquenhas em fase de recuperação de cirurgias abdominais e ginecológicas. Mesmo assim, ele teve a aprovação de uma renomada autoridade médica em avaliação de risco clínico à época, Curtis Wright, também responsável pelo “Centro para Avaliação e Pesquisa de Drogas” da entidade. Anos depois, Curtis deixou a FDA para se tornar um dos responsáveis pelo desenvolvimento de novos fármacos para a Purdue Pharma, a empresa farmacêutica produtora do OxyContin.

A essa conduta individual, que poderia ser considerada um desvio ético, soma-se um procedimento institucional questionável. Desde 1992, a lei Prescription Drug User Fee Act garante à FDA receber recursos da indústria farmacêutica para avaliar as novas drogas produzidas por essas mesmas corporações. Até 2016, essas taxas de apoio haviam somado US$ 7.67 bilhões e, no ano de 2016, elas foram maiores do que os recursos públicos alocados pelo Congresso. Essa articulação público-privada na condução do controle de drogas levantava, obviamente, suspeitas sobre a confiabilidade e independência das avaliações da FDA. E, sobre isso, um caso merece destaque.

Em 2015, após a Purdue Pharma já ter sido condenada em um processo judicial por marketing abusivo e o aumento da dependência e overdoses de opioides ser uma realidade nos Estados Unidos, a FDA aprovou o uso do OxyContin para crianças a partir dos 11 anos de idade para controle da dor. À época, as críticas foram variadas. Andrew Kolodny, médico e diretor executivo da organização Médicos pela Prescrição Responsável de Opioides, afirmou que estudos aprofundados não haviam sido feitos, o que era tão mais preocupante pelo fato dos jovens, em processo de formação física e psíquica, serem mais propensos a desenvolver um uso problemático. Com a mesma preocupação, o Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (NIDA, em inglês), uma instituição de pesquisa do próprio governo federal norte-americano, alertou, em seu site, que opioides, tal como o OxyContin, eram aditivos em jovens e poderiam levar ao uso de heroína.

Em casos como esse, no qual há relevante interesse público ou a questão é controversa, a FDA geralmente teria como prática convocar comitês independentes de especialistas para emissão de pareceres. No entanto, nenhum comitê desse tipo foi chamado para a avaliação da aprovação do uso pediátrico de OxyContin. De acordo com Caleb Alexander, presidente de outro comitê da FDA e diretor de um centro sobre uso seguro de drogas na Universidade Johns Hopkins, dificilmente um grupo assessor aprovaria o OxyContin para esses propósitos em tal contexto.

Olhando para o cenário atual da aguda crise de abuso de opioides nos Estados Unidos, espera-se que a estrutura governamental estadunidense se sentiria obrigada à uma redefinição de rumos do funcionamento do controle de drogas. Surpreende mais ainda os discursos do atual presidente Donald Trump durante as eleições de 2016 e nos seus primeiros meses de governo, que fantasiaram um embate de grandes proporções com as corporações farmacêuticas. Trump afirmou reiteradas vezes que enfrentaria seus lobbys em diferentes frentes. No entanto, o discurso, como na maioria das vezes ocorre, esconde mais do que revela e a atuação de Trump nos bastidores sugere uma direção praticamente oposta.

Não houve até o momento qualquer declaração oficial de emergência nacional, como indicavam seus discursos. A recente declaração da secretaria federal de saúde, que passou a tratar a crise de opioides como uma emergência pública de saúde, confere algumas prerrogativas de ação para as entidades federativas. No entanto, tem sido avaliada por especialistas como pouco efetiva para lidar com uma situação mais complexa e extrema. Além disso, nada indica que as recomendações dadas pela Comissão de Combate à Dependência de Drogas e à Crise de Opioides, criada pelo próprio presidente, estejam sendo colocadas em prática.

De outro lado, Trump recentemente nomeou Alex Azar II o novo secretário federal da saúde, responsável pela FDA e pela regulação das indústrias farmacêuticas. Azar II foi membro do conselho de administração de um dos maiores lobbys da indústria farmacêutica no Congresso Americano, a Biotechnology Innovation Organization. Além disso, trabalhou para uma das maiores companhias farmacêuticas do mundo, a Eli Lilly, que em 2009 pagou quase US$ 1.5 bilhão como acordo em acusações criminais referentes à promoção indevida do medicamento Zypreza, um antipsicótico.

Alguns meses antes, Trump já havia nomeado o médico Scott Gottlieb, docente da Universidade de Nova York e membro do think tank conservador American Enterprise Institute, como novo comissário responsável pela FDA. Crítico da intervenção governamental no mercado de medicamentos para reduzir seus custos, documentos recentemente revelados mostram que Gottieb obteve mais de US$ 3 milhões ao longo de 2016 e parte de 2017 em honorários referentes a palestras, consultorias, participação em conselhos e outros tipos de trabalhos relacionados a empresas farmacêuticas e firmas de investimentos focadas na área da saúde.

Foi particularmente curioso ler um texto de opinião de Gottlieb, publicado no Wall Street Journal em 2012, intitulado “The DEA’s War on Pharmacies—and Pain Patients”, condenando as ações da Agência de Combate às Drogas (DEA) norte-americana contra o descaminho de prescrições de oxicodona, que incriminavam empresas farmacêuticas. De acordo com Gottieb, tais empresas não poderiam ser tratadas como os traficantes de drogas das ruas. Afinal, não eram “cartéis de drogas colombianos” e “seus CEOs não eram Pablo Escobar”.

Essa circulação das elites nacionais estadunidenses entre a esfera privada e pública evidencia as articulações entre a política de drogas e a economia capitalista. O mais provável é que essa não seja uma situação excepcional e sim uma parte do funcionamento estrutural do controle de drogas pelos Estados. Se isso for verdade, a investigação poderia identificar articulações similares em outros espaços e mesmo sua rearticulação com atores correlatos em outros países, de forma a garantir a reprodução do mercado de medicamentos opioides.

Sobre esse último aspecto, vale notar que nos últimos anos a exposição midiática sobre os problemas relacionados ao abuso de opioides e sua vinculação com a expansão do OxyContin fez com que o medicamento apresentasse uma tendência de baixa nos Estados Unidos. Suas prescrições apresentam uma queda acumulada de 40% desde 2010. Por isso, a família Sacker, dona da Purdue Pharma, utilizando uma rede internacional de companhas farmacêuticas, conhecida como Multipharma, começou a construir estratégias de vendas em novos mercados pelo mundo, dentre os quais se destaca a América Latina. A Figura 1 mostra a desproporção de uso de opioides entre, de um lado, Estados Unidos e Canadá e, de outro, os países latino-americanos, o que os qualificam como um mercado extremamente promissor.

Figura 1. Distribuição de opioides equivalentes à morfina (morfina em mg / paciente que necessita de cuidados paliativos, média de 2010 a 2013) e porcentagem estimada de necessidades atendidas para as condições de saúde associadas a graves problemas de saúde


Fonte: Knaul et al / The Lancet Comissions




A atuação dessa companhia no Brasil, por exemplo, se iniciou esse ano, ao patrocinar um evento no Rio de Janeiro sobre dor em pacientes com câncer. Nele, o médico Joseph Pergolizzi, um porta-voz do uso de opioides, que coordena uma clínica para combate à dor na Flórida, fez uma palestra na qual “desmistificava” os problemas com o uso de medicamentos com essa base farmacológica. Para os executivos da Multipharma, essa “opiofobia” precisa ser combatida em diferentes frentes, de forma a ampliar o mercado de opioides em outras regiões do mundo para além da América do Norte.

Ao final dessa investigação, rememorei o caminho trilhado com a ajuda de alguns ensinamentos do detetive Auguste Dupin, personagem do romance de Edgar Allan Poe, Os Crimes da Rua Morgue. Essa crise dos opioides na América do Norte dá a oportunidade de observar com diferentes lentes as articulações e rearticulações entre alguns dos atores que estabelecem o controle das drogas no âmbito doméstico dos países, com relevantes impactos internacionais. Mais interessante ainda, apesar de ter começado pela discussão usual sobre o tema, focada na ilicitude do uso de drogas e na ação coercitiva dos aparelhos policiais no Canadá, avancei rapidamente para a importância das corporações farmacêuticas transnacionais e, decorrentemente, do mercado capitalista no debate sobre as drogas. Esse olhar possibilita apontar algumas fissuras em barreiras morais e disciplinares construídas há muito, entre o lícito e o ilícito, entre o público e o privado e entre o local e o global.

O final desse thriller acadêmico marca somente mais uma etapa da expansão dos opioides no mundo. Seu histórico, nuances e desdobramentos para a área de segurança das drogas é um vasto campo de investigação aberto. Para mim, esse thriller somente inicia esse desafio.


PS: vale um registro de agradecimento ao jornalismo investigativo de altíssima qualidade que encontrei ao longo da pesquisa, cujas reportagens estão referenciadas em hiperlinks ao longo dos textos. Eles conferiram o suporte para a redação sobre o tema dos opioides, revelando documentos, fatos e dados fundamentais.




* Professor do departamento de relações internacionais da PUC-SP e pesquisador visitante do departamento de criminologia da Universidade de Ottawa, Canadá



Drogas e capitalismo em Toronto (1) : as mortes da Rua Queen

Um thriller acadêmico: das overdoses por opioides em Toronto à produção ilícita em Guangzhou


Por Paulo Pereira - Via Outras Palavras






No preâmbulo de “Os Crimes da Rua Morgue”, um precursor da literatura policial mundial, o narrador anônimo de Edgar Allan Poe afirma que resolver um enigma demanda saber “o que deve ser observado”. Por vezes, o contexto é mais importante do que o objeto imediato do enigma.

Com esse ‘estado de espírito’ li o relato das quatro mortes ocorridas em julho desse ano na Rua Queen e suas proximidades, na parte antiga da cidade de Toronto. Todas elas, atestou a polícia de Toronto, eram resultados de overdoses provocadas por opioides sintéticos, possivelmente fentanil, ou similares semissintéticos, em alguns casos misturados a outras drogas, como heroína. Os casos geraram grande comoção na cidade e o próprio prefeito John Tory se pronunciou a respeito, qualificando-os como “tragédias” que tiveram “impactos devastadores na comunidade como um todo”, os mesmos termos utilizados pelo primeiro ministro Justin Trudeau no início do ano para falar sobre casos semelhantes ocorridos na costa Oeste do país.

Tal repercussão se explica pelo contexto mais amplo de overdoses por opioides que o Canadá tem vivenciado recentemente. Segundo o relatório nacional divulgado pelo governo canadense em maio, foram registradas ao menos duas mil e quinhentas mortes por overdose de opioides no país em 2016. Na província da Colúmbia Britânica, onde fica Vancouver, o rápido aumento dessas mortes chama atenção (2014:266; 2015:510; 2016:914; 2017 – 6 meses:780). O problema, no entanto, é certamente ainda maior, uma vez que o governo federal não teve acesso aos dados da província de Quebec e outras províncias apresentaram dados defasados ou parciais. Os dados da província de Ontário, por exemplo, à qual pertence a cidade de Toronto, se referem aos seis primeiros meses de 2016 indicam 412 mortes. Tais informações, no todo, sugerem que a overdose por opioides é um problema nacional e com uma preocupante projeção de curto prazo.


Fentanil em pílulas





A percepção que se tem do Canadá está distante desse cenário. Por ser um país razoavelmente liberal com o uso das drogas ilícitas e muito progressista em relação às políticas públicas de redução de danos, que remontam aos anos 1980, imagina-se que o uso e o abuso de drogas estejam sob controle. Reforçam essa percepção tanto a existência das salas de uso assistido de drogas injetáveis em algumas províncias (as Insites), quanto a baixa taxa de encarceramento por problemas relacionados a drogas e a regulação nacional da maconha prevista para julho de 2018. Os opioides sintéticos, no entanto, parecem estar fora desta curva normal. Por isso, enquanto eu lia diversas narrativas a respeito das mortes da rua Queen, uma pergunta rodeava a minha mente: como e por que isso está ocorrendo no Canadá?

Não tardou para eu encontrar uma possível explicação governamental, ressoada pelos principais veículos de comunicação do país: a “culpa” era da China.

De acordo com a Royal Canadian Mounted Police, equivalente à Polícia Federal brasileira, o fentanil e similares estariam sendo produzidos em laboratórios clandestinos em grandes cidades da China, tal como em Cantão (Guangzhou), e exportados para o Canadá. De fato, esse fluxo é característico da circulação de diferentes tipos de drogas por todo mundo e conecta mercados de produção, distribuição e consumo que se retroalimentam, funcionando como uma cadeia bem integrada e especializada. Dela participam invariavelmente atores privados, no mais das vezes envolvidos também em dinâmicas lícitas, bem como atores governamentais, principalmente de agências de aplicação da Lei, mas também de outras esferas nos diversos países pelos quais as drogas ilícitas circulam.

Esse mercado internacional do fentanil estaria sendo operacionalizado por transações ilícitas eletrônicas realizadas principalmente por sites como o EC21.com, um mercado de internet on-line que conecta licitamente milhões de fornecedores e compradores em todo o mundo. Como o fentanil é utilizado em ínfimas quantidades por conta da sua potência anestésica (50 a 100 vezes maior que a potência da morfina, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime), seria fácil escondê-la em cargas transportadas pelos portos e aeroportos, mas, principalmente, em pacotes enviados pelo correio. A estrutura postal internacional seria, portanto, um suporte decisivo desse comércio ilícito. Após chegar ao Canadá, o fentanil seria misturado a outras drogas em laboratórios clandestinos, principalmente nas províncias da Columbia Britânica e Alberta, para ser vendido pelo país, nas ruas, perto de abrigos para sem teto, em shows de música eletrônica, em bairros ricos e pobres, caracteristicamente nas cidades mais populosas.


Apreensões de fentanil advindo da China desde abril de 2016 (Vice News)





O mercado ilícito canadense construído em torno do fentanil parece ser extremamente lucrativo. Estimativas mostram que um quilo do opioide sintético puro com todos os demais substâncias e equipamentos necessários para a produção comercial, a um custo de CAD $100 mil, podem render alguns milhões com a venda de varejo. Ao que tudo indica, essa indústria de transformação é o que impulsiona essa dinâmica capitalista “do B”.

Aí estava a resposta à primeira parte da minha pergunta, “o como” o fentanil circulava pelo Canadá. Faltava ainda “o porquê” e esse é sempre um importante x do enigma. Os chineses não estavam obrigando os canadenses a utilizarem fentanil ou seus derivados, isso era certo. Então, por que os canadenses a estavam utilizando em tão alta quantidade? Por que estavam consumindo exatamente essa substância entre tantas outras possibilidades disponíveis no mercado ilícito?

Como estou longe de ser qualquer coisa próxima ao detetive Auguste Dupin, que vai desvendar o mistério do romance de Poe, não tinha nenhuma hipótese até então. Por isso, voltei às leituras a respeito de casos de abuso de fentanil, buscando identificar o contexto mais amplo que me levaria ao entendimento da crise dos opioides no Canadá.


Continua ….



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PS: Até 01/2018 estou vinculado ao departamento de criminologia da Universidade de Ottawa, Canadá, como pesquisador visitante. Durante esse período publicarei textos no blog Terra em Transe relacionados à pesquisa em andamento sobre a dimensão internacional do controle das drogas ilícitas no espaço urbano de Toronto


Drogas e capitalismo no Canadá (2): as pegadas da Big Pharma

Centenas de pessoas estão morrendo a cada ano por abuso de opioides em um dos países mais ricos do mundo. Mas a crise não deflagra uma “guerra às drogas” — porque está envolvida a indústria farmacêutica transnacional


Por Paulo Pereira - Via Outras Palavras


Skyline de Toronto. Só nesta cidade, cinco vezes menos populosa que São Paulo, cerca de mil pessoas sucumbem a cada ano por overdose de opiácios



Seguindo os passos do detetive Auguste Dupin no romance de Edgar Alan Poe, Os assassinatos da rua Morgue, terminei a primeira parte desse thriller acadêmico, “Drogas e capitalismo em Toronto: as mortes da Rua Queen”, publicado há duas semanas. Nele, fiz uma conclusão parcial a respeito do questionamento sobre como e por que o Canadá estava enfrentando uma crise nacional de abuso de opioides. O “como” dessa crise se desvelou a partir da conexão entre as mortes ocorridas na rua Queen, em Toronto, e uma indústria de produção de fentanil localizada a mais de 12 mil quilômetros dali, em algum lugar da cidade de Guangzhou ou a ela similar, na China. Faltava, no entanto, o x do enigma: o porquê. Por que os canadenses estavam utilizando opioides em tão alta quantidade? Por que estavam consumindo exatamente essa substância entre tantas outras possibilidades disponíveis no mercado ilícito?

No início das minhas pesquisas encontrei uma revista online chamada Toronto Life que discute a vida cultural, política e social da cidade. A revista dedica uma coluna ao tema das drogas, trazendo relatos pessoais de ex-usuários problemáticos de drogas, que contavam a sua história, seu sofrimento e redenção. Lá encontrei um caso paradigmático que me deu uma chave explicativa para o “porquê” que eu procurava, abrindo outro contexto de interpretação sobre o abuso de opioides no Canadá.

Darryl Gebien, um médico de carreira promissora, atualmente cumpre dois anos de prisão em uma penitenciária federal por tráfico e falsificação de prescrições de fentanil e similares para si mesmo e para outros. A longa e detalhada história narrada por ele na Toronto Life faz uma reconstrução do próprio uso problemático de fentanil, intercalando explicações de diferentes matizes, médica, individual e familiar.


Darryl Gebien



O mais surpreendente do relato é o ambiente e as dinâmicas lícitas nas quais Darryl desenvolve o abuso de opioides. Ainda criança, para aliviar as dores resultantes de uma cirurgia para a correção de uma hérnia de hiato, os médicos lhe administraram doses de morfina. Já adulto, para suportar crises de dores nas costas, sua mãe lhe deu seu medicamento à base de opioides, chamado Dilaulid (anos depois ela viria a morrer ao administrar erroneamente doses de fentanil para suas próprias dores nas costas). Novamente, após uma contusão no polegar em um jogo de hockey, Darryl teve receitado oxicodona pelo seu médico, também um opioide. Depois disso, sempre que ia a médicos alegando dores, solicitava prescrição de remédios à base de opioides, que nunca lhe foram negados. Em uma nova fase, por uma série de fatores pessoais, psicológicos e profissionais, Darryl passou a ter um uso problemático da substância (fumava fentanil de 6 a 15 vezes ao dia em sua casa) e, para manter esse uso, passou a falsificar receitas com a assinatura de outros médicos, colegas de trabalho, até ser descoberto. Perdeu sua licença para exercer a profissão medica, ficou apartado dos dois filhos pequenos e foi internado algumas vezes em clínicas particulares e públicas, até que acabou preso pelas falsificações e pelo tráfico de fentanil obtido em farmácias.


Emplastro de fentanil





Toda essa derrocada do médico promissor ocorreu em um bairro de classe alta, primeiro de Toronto, depois nas suas cercanias, em Barrie. O circuito de envolvimento, abuso e obtenção da droga ocorreu em hospitais e farmácias, ambientes de possibilitam obtenção e uso de diferentes tipos de drogas, mas usualmente de maneira lícita. Tendo em conta esse contexto, uma fala de Darryl, como médico, pareceu particularmente significativa:
“Os médicos são parte do problema. Uma das queixas mais comuns que recebemos de pacientes é que não damos o devido tratamento à dor crônica. E, como a dor é subjetiva e difícil de diagnosticar, tendemos a aceitar a palavra dos pacientes quando dizem que estão com dor. No final do ano passado, o College of Physicians and Surgeons anunciou que estava investigando 86 médicos por prescreverem doses diárias de opioides que ultrapassavam as diretrizes nacionais.”

Ao buscar alguma referência a respeito do papel dos médicos no uso de opioides, logo apareceram diversas menções ao altíssimo número de prescrições a esse tipo de fármaco. Somente no biênio 2015/2016 foram preenchidas mais de 9 milhões delas para cerca de 14% da população da província de Ontário, uma em cada sete pessoas. No Canadá, as farmácias receberam mais de 19 milhões de prescrições para opioides em 2016. De acordo com o departamento de justiça do Canadá, a obtenção de opioides entre aqueles que têm um uso abusivo se dá da seguinte forma: 27% usam suas próprias prescrições, 32% obtém de amigos, 11% obtém de familiares, 19% obtêm na rua e 11% obtêm por prescrições de mais de um médico. Isso significa que a imensa maioria das pessoas que faz uso abusivo da substância a acessa dentro de um circuito que envolve médicos, parentes e amigos, sempre com alguma prescrição médica.

Esse contexto definiu que um dos porquês do enigma circundava um “lugar” improvável na discussão e operacionalização da chamada “guerra às drogas” nas sociedades contemporâneas: a indústria farmacêutica. Esse “lugar” da investigação é, na verdade, um ator político que remete inevitavelmente ao incômodo vizinho canadense, os Estados Unidos. Esse vizinho à fronteira sul é o berço de uma das indústrias farmacêuticas de opioides mais lucrativas e relevantes do mundo, cujo mercado interno foi estimado em US$ 11 bilhões em 2014 e com previsão de alcançar 17.7 bilhões em 2021. De maneira correspondente, poderíamos dizer, são estimados 2 milhões de americanos dependentes de opioide, além de milhares de mortes por overdose. Em 2014, foram 29 mil mortes – 61% de todas as mortes por overdose nos Estados Unidos. Os números de 2016, ainda não divulgados oficialmente, se seguirem a mesma proporção, representarão quase 37 mil mortes por opioides das aproximadamente 60 mil mortes por overdose que o país contabilizou.

Dentro desse grande e complexo universo da indústria farmacêutica, uma empresa chama a atenção pela sua contribuição à área da pesquisa com fármacos opioides semissintéticos, a Purdue Pharma.


Purdue Pharma, Stamford, CT, EUA





No momento em que me deparei com a Purdue Pharma ficou claro que era chegada a hora de fazer mais um movimento de escala na análise. Teria que sair do contexto mais amplo e observar com lupa os detalhes dessa empresa, o que eu acreditava poder ser tão ou mais revelador do que o destino de Darryl Gebien.

O terreno que se descortinava à frente era movediço, no qual lícito e ilícito, público e privado e local e global se misturavam em formas pouco exploradas nas discussões sobre drogas, segurança e relações internacionais. No entanto, como o caminho do conhecimento é sem volta, segui em frente.

Continua ….


Drogas e capitalismo nas Américas (3): opiáceos e hipocrisia

EUA vivem uma explosão brutal das mortes por overdose – mas a polícia não mexe um dedo. Motivo: a causa é uma droga que rende bilhões de dólares à indústria farmacêutica


Por Paulo Pereira via Outras Palavras



Uma gigantesca onda de mortes por overdose de opiáceos (tratada como “epidemia” nos EUA) levou Donald Trump a afirmar ontem que seu país vive uma “emergência nacional de saúde”. O presidente baseia-se em fatos reais. As últimas estatísticas mostram que o número de mortes de norte-americanos por overdose de opiáceos já chega a 140 por dia – mais de 50 mil ao ano, um número semelhante ao total anual de homicídos no Brasil.

Mas as medidas adotadas pelo presidente dos EUA são pífias. Ao contrário do que se faz contra a maconha (zero mortes por overdose) ou a cocaína (três vezes menos mortes que as provocadas por opiáceos, como mostra um dos gráficos deste texto), não haverá “guerra às drogas” contra estes psicotrópicos. Motivo central: eles estão totalmente integrados ao sistema: são produzidos e vendidos pelas maiores indústrias farmacêuticas do mundo.

No terceiro texto de seu “thriller acadêmico”, Paulo Pereira coloca o foco nesta hipocrisia crucial de nossos tempos. Há décadas, dezenas de milhares de pessoas morrem inutilmente, vítimas do combate militarizado (e cada vez mais falido) que a maior parte dos governos conduz contra certas substâncias proscritas, a que chamam de “drogas”. Estes mesmos governos são impotentes para combater os fármacos que realmente representam ameaça à saúde pública – porque estão cada vez mais submissos ao grande poder econômico.


Raymond Sackler, último fundador vivo da Purdeu Pharma, com sua esposa, Beverly



No romance de Edgar Allan Poe, Os Crimes da Rua Morgue, que deu caminho a esse thriller acadêmico, o detetive Auguste Dupin desvendou o assassinato da Sra. L’Espanaye e da sua filha Camille quando mirou sua investigação além do artífice direto das suas mortes. Só assim conseguiu alcançar o verdadeiro responsável, aquele que havia criado as condições para que tal violência ocorresse.

Na terceira parte dessa investigação peguei emprestado esse mesmo olhar para tentar compreender a dinâmica política e econômica que estava além daquelas mortes da Rua Queen em Toronto (1º texto) e do abuso de fentanil pelo jovem médico Darryl Gebien (2º texto). A mira apontava para a indústria farmacêutica. Mais particularmente para uma das principais corporações transnacionais produtoras de opioides semissintéticos do mundo, a Purdue Pharma, pertencente à família Sackler.

Certamente, poucas pessoas já ouviram falar da família Sackler, apesar de ela ser uma das 25 famílias mais ricas dos Estados Unidos, segundo lista elaborada anualmente pela Forbes, com uma fortuna estimada em mais de US$ 13 bilhões. Reconhecidos por diversos prêmios internacionais, os Sacklers são considerados grandes filantropos por suas doações milionárias para museus famosos, como o Metropolitan Museum of Art, Guggenheim, Tate e Louvre, além de apoiar a construção de instalações científicas e médicas em universidades e centros de pesquisa de excelência, como em Berkeley, MIT, Oxford, King’s College, Universidade de Londres e Universidade de Tel Aviv.

Grande parte do seu enriquecimento advém da inovação tecnológica com o fármaco opiáceo semissintético oxicodona, que possibilitou a sua popularização desde meados dos anos 1990 com o medicamento OxyContin.

O OxyContin foi uma grande novidade nos anos 1990 porque, diferentemente dos medicamentos à base de opiáceos semissintéticos que existiam até então, dispunha de um dispositivo de liberação lento do fármaco no organismo, que, teoricamente, garantia a manutenção dos efeitos do opioide por mais de 12 horas. Isso evitava, de acordo com a Purdue Pharma, adicção e overdoses.


Relógio distribuído pela Purdue Pharma para médicos para promover o OxyContin




Um grande investimento em marketing foi feito pela empresa à época do lançamento do medicamento. Inicialmente, foram gastos US$ 207 milhões. Dentre as variadas práticas para a disseminação do OxyContin estava o oferecimento do medicamento para médicos de família e para clínicos gerais. A empresa também convidava médicos para seminários seguidos de grandes jantares e os levava para festas em resorts durante os finais de semana, onde eram encorajados a prescrever o medicamento e indicá-lo para colegas de profissão.

Essa dinâmica incentivou a prescrição desenfreada do medicamento pela classe médica a uma imensa gama de sintomas de dor, que extrapolavam o seu uso tradicional, direcionado para pacientes com câncer em estágio avançado e em procedimentos cirúrgicos de elevada intervenção. O OxyContin passou a ser prescrito para alívio de dores muito mais comuns e, muitas vezes, crônicas, tais como problemas nas costas, dores no joelho e em outras articulações, fibromialgia, etc.

O resultado disso foi que em 2010 as vendas do medicamento alcançaram US$ 3 bilhões, representando um terço da receita resultante da venda de todos os tipos de analgésicos nos Estados Unidos. Desde a sua criação em 1995, estima-se que o medicamento gerou uma receita de aproximadamente US$ 35 bilhões para a Purdue Pharma.


Frasco de OxyContin




Após seu lançamento, no entanto, recorrentes reclamações quanto à duração dos efeitos do OxyContin emergiram de diferentes lugares. Pacientes, médicos e pesquisadores independentes alegavam duração de 8 horas ou menos ao invés das 12 horas propagandeadas. A Purdue Pharma, no entanto, reafirmou ao longo dos anos sua orientação sobre os intervalos de uso, incentivando, em caso de necessidade, o aumento da dose prescrita. A decorrência disso nos EUA foi que, atualmente, mais de 50% dos pacientes que utilizam OxyContin há mais de três meses tomam doses acima de 60 miligramas, consideradas excessivamente altas e perigosas por especialistas.

Uma pesquisa feita com mais de 32 mil pacientes na província de Ontário, Canadá, por sua vez, identificou que uma em cada 32 pessoas que utilizavam altas doses desse tipo de medicamento sofreram uma overdose fatal.

O gráfico 1 indica que a curva ascendente de overdoses por opioides sintéticos e por heroína nos EUA segue a mesma tendência da curva de prescrições de medicamentos com uma base farmacológica similar. Isso sugere que pode haver uma relação causal entre o aumento do consumo de opioides prescritos, o abuso de opiáceos restritos e obtidos de maneira ilegal (heroína) e o abuso de opioides sintéticos.

Gráfico 1. Estados Unidos, prescrições de opioides e mortes por overdose (heroína e fentanil/outros opioides), mensalmente, 2000 a 2016

Fonte: Economist.com (dados do Centers for Disease Control and Prevention)




O gráfico 2, por sua vez, indica que houve um contínuo e expressivo aumento do número de overdoses por opiáceos semissintéticos, como a oxicodona, que segue a mesma tendência da curva das prescrições de opioides apresentadas no gráfico 1.

Gráfico 2. Tipo de droga relacionada às mortes por overdose nos Estados Unidos, 2000 a 2016


Fonte: National Center for Health Statistics, CDC Wonder



Por fim, o gráfico 3 indica que parte das mortes por overdoses contabilizadas no gráfico 2 advém de opioides prescritos para alívio de dores. Elas seguem a mesma tendência de aumento das prescrições apresentada no gráfico 1.

Gráfico 3. Número de mortes por opioides prescritos para alívio de dores nos Estados Unidos, 2002 a 2015

Fonte: National Center for Health Statistics, CDC Wonder



Identificar uma curva ascendente comum não é o mesmo que demonstrar a existência da sua relação causal. Mas reforça essa hipótese o fato do Canadá ter selado esse ano um acordo no nível nacional, derivado de ação coletiva de 2 mil cidadãos, contra a filial da Purdue Pharma no Canadá. Após 10 anos de processo judicial a empresa concordou em pagar US$ 20 milhões como indenização pela inadequada condução de marketing e venda de OxyContin e OxyNEO que teriam gerado problemas de saúde e adição. O valor é praticamente irrisório se comparado aos custos gerados à estrutura de saúde pública do país durante o mesmo período. Também é ínfimo, se comparado ao valor pago em 2007 pela Purdue Pharma dos Estados Unidos, após condenação em uma corte federal. Nesse ano, a multinacional teve três executivos declarados culpados por enganar reguladores, médicos e o público sobre os riscos de dependência do OxyContin. Foi obrigada a pagar multas no valor de US$600 milhões e, os executivos, um total de US$ 34.5 milhões.

Sobre a atribuição de responsabilidade pela crise de uso de opioides nos Estados Unidos e no Canadá, chama a atenção o fato da Purdue Pharma também ser acusada de ter incentivado o mercado ilícito de opioides. Quem fazia tais acusações eram procuradores gerais de diferentes estados norte-americanos e, pasmem, a própria Divisão Antidrogas dos Estados Unidos (DEA).

Nesse momento da investigação me perguntei se seria possível que o envolvimento do Estado nesse tema se limitasse a cumprir a cartilha da “lei e ordem”. Nessa narrativa clássica sua função seria ordenar as disfunções sociais, julgando malfeitos das corporações farmacêuticas e combatendo o tráfico de drogas por meio das instituições policiais, como, na América do Norte, a DEA e a Royal Canadian Mounted Police.

Lembrei-me que algumas reportagens jornalísticas investigativas sobre o tema mencionavam que a principal defesa da Purdue Pharma durante seus julgamentos era a aprovação do OxyContin pelas agências governamentais de saúde. Ao voltar a esses textos, repassei cada uma das referências a tais agências e encontrei novamente a trilha já rala dessa investigação. Minha bússola apontava para a Administração de Alimentos e Drogas (FDA), uma das agências federais do ministério da Saúde dos Estados Unidos. Talvez esse fosse o elo que faltava nessa trama de processos e atores para a explicação da crise de opiáceos e opioides na América do Norte.

Quando comecei essa investigação, projetei a escrita de uma trilogia. A pesquisa, no entanto, trouxe dados, histórias e personagens desconhecidos, que me conduziram por um caminho mais longo do que esperava. Por isso, para finalizar essa trama de violências diretas e veladas, cujo pano de fundo mescla drogas e capitalismo, será necessário um último texto.

Continua …

POR QUE PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE GÊNERO NAS ESCOLAS?



Por Robson Freire Via Caldeirão de Ideias


Olá amigxs

Eu tenho visto diversos embates sobre se devemos ou não falar/debater/ensinar sobre gênero nas escolas. Desde quando nascemos, somos ensinados o que podemos ou não podemos fazer de acordo com nosso gênero. O doutrinamento de gênero começa com as cores dos enxovais, os brinquedos que ganhamos de presente e o tipo de roupa que nossos pais nos dão para vestir. Mas primeiro vamos falar sobre o que está causando tanta confusão.

Para começar a falar sobre gênero tem um artigo da Georgiane Garabely Heil Vázquez, intitulado Gênero não é ideologia: explicando os Estudos de Gênero lá no portal Café História, que é maravilhoso. Primeiro que lá ela explica que não é ideologia de gênero, que é estudo de gênero. Mas deixa ela explicar isso aqui para vocês:

“A expressão “ideologia de gênero”, que tanto tem sido empregada nos dias de hoje para criticar os Estudos de Gênero, não é uma categoria acadêmica ou um objeto de pesquisa. Como vimos, os pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam o entendem justamente no contrário: que gênero não é uma ideologia. Para eles, a expressão “ideologia de gênero” é estranha, uma anomalia. Quem fala (e muito) em “ideologia de gênero” são os movimentos conservadores – muitas vezes com explicações falsas e sem fundamento”

Entendeu isso primeiro, né? Então vamos em frente. Hoje em dia, pesquisadores ou pesquisadoras dos Estudos de Gênero, que estudam e problematizam essa temáticas vêm sofrendo uma série de ataques (alguns, violentos) por uma minoria ruidosa e violenta (que tem o apoio na mídia) que se opõem ao debate civilizado sobre a temática de gênero. O caso da boneco com rosto de Judith Butler que foi incendiado em protesto, durante uma palestra dela, onde teve palavras de ordem do tipo “Queimem a bruxa!” e a agressão sofrida por ela quando já ia embora no aeroporto são algumas dessas aberrações.


Diversidade e respeito são questões importantes na perspectiva social dos Estudos de Gênero.
Foto: Pixaby.



A maioria que grita contra o estudos de gênero, não sabe nada sobre o tema. Não faz a mínima ideia do que seja e fica repetindo aquilo que o galo (cego) das redes cantou e ele feito papagaio também repete acrescentando a sua pitada de ódio, violência e intolerância, sem ao menos se dar ao trabalho de pesquisar no Google o que seja Estudos de Gêneros. Outro trabalho/artigo muito bom que fala sobre o tema, mas que dá um toque político ao tema e o Gênero, Identidade e Espaço Público da Verônica Urrutia. Tem um trecho que quero mostrar aqui que fala assim:
“Talvez uma das frases mais citadas da literatura feminista seja aquela com que Simone de Beauvoir inicia o seu famoso livro de 1949, O segundo sexo: “Não se nasce mulher: torna-se mulher.” A afirmação tenta, segundo a leitura que dela faz Judith Butler (1987), reconhecer o caráter de escolha pré-reflexiva do gênero, como modo de viver o corpo num mundo de estilos corporais já estabelecidos, definidos segundo regras, tabus e sanções. O corpo é a realidade de início, e só depois vem o gênero, como atividade originante que acontece sem cessar, um ato diário de interpretação e reconstrução. A escolha seria um ato espontâneo e tácito do que na teoria sartriana que influenciara Beauvoir se chama de “quase conhecimento”; é, diz Butler, um ato não inteiramente consciente mas apesar disso acessível à consciência – o tipo de escolha que fazemos e só muito mais tarde entendemos que fizemos.“





Há uma extensa literatura sobre o assunto que eu vou deixar aqui algumas sugestões e links imprescindíveis para qualquer um que queira saber mais sobre o tema. O primeiro é a o texto 18 textos essenciais para estudos e pesquisas sobre gênero e sexualidade (com direito a link para baixar os textos/livros sugeridos) da Julieta Jacob, que é jornalista, educadora sexual e mestre em Direitos Humanos pela UFPE , do blog Erosdita que aborda o sexo e a sexualidade de forma leve e informativa (os vídeos do blog no canal no Youtube são maravilhosos).






A segunda indicação é da Silvana de Souza Nascimento, que é professora do departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, e que indica 5 obras clássicas sobre os estudos de gênero (esses sem links para download). E a terceira e última indicação é outro trabalho maravilhoso intitulado Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo pessoal da Mariza Corrêa, Professora do Departamento de Antropologia do IFCH/Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, que faz um percurso pessoal e bem linear do movimento feminista no Brasil.




Eu dei essa volta toda e ainda não falei sobre o porque da importância de se discutir/debater/falar abertamente sobre gênero na escola. A questão é muito simples: falar de gênero na escola é exercitar a cidadania para o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres. Acredito que pouco importa se nascemos em um corpo definido geneticamente sexado como fêmea ou macho: temos o direito de habitar nossos corpos como desejarmos sem medo de violência e discriminação. PONTO. Atitudes homofóbicas e transfóbicas ainda estão, infelizmente, profundamente arraigadas em todos os cantos do planeta expondo lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) de todas as idades a flagrantes violações de direitos humanos e a todo tipo de violência física real ou simbólica.




A escola é um espaço não só para ensinar letras e números, mas também para promover cidadania; e, nesse sentido, deve ser um espaço acolhedor, democrático e inclusivo, onde estudantes aprenderão que é possível o convívio com a diferença longe da violência e opressão. Uma escola que promova a igualdade de gênero não é uma escola que ensina crianças e adolescentes a serem gays ou que ensinam sexo de maneira inapropriada para as diferentes faixas etárias. É espaço pedagógico no qual se aprende que sexo é muito mais que natureza ou biologia, é também regime político da vida. Por isso acreditamos que a escola é lugar para o ensino do respeito mútuo. Isso não significa que a escola disputará com a casa ou a igreja – há valores morais que aprendemos e ensinamos em nossa vida privada.




Mas é principalmente na escola que convivemos pela primeira vez com os diferentes de nós: as crianças verão que há diferentes cores, religiões e modos de se apresentar no mundo. Uma escola que promova igualdade de gênero será também espaço para todos e todas e, quem sabe em um futuro bonito, terá a potência de formar uma sociedade livre do ódio, violência ou perseguição. Acredito que o espaço escolar deve promover a igualdade. Se há razão em dizer que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher, também diremos que ninguém nasce homofóbico, transfóbico ou agressor de mulheres. Há uma socialização do gênero, uma pedagogia dos corpos. Não há isso de natureza masculina, a qual condiciona homens com pênis a serem provedores, fortões ou gostar de mulher; ou, então, natureza feminina, que condiciona mulheres com vagina a serem mães, delicadas e boas esposas de homens.




Existe todo um aparato opressor de precarização de mulheres e dos que vivem fora da norma, o tal fora do PADRÃO HÉTERO NORMATIVO. A rua é um espaço perigoso às mulheres que têm medo de serem estupradas por um desconhecido ao andarem desacompanhadas, mas a casa também está longe de ser espaço protegido para aquelas que sofrem violência de seus pais ou companheiros. Homens e mulheres trans ainda lutam pelo direito a um nome diferente do que receberam ao nascer, mulheres morrem por abortos clandestinos, a população LGBT sofre violência todos os dias pelo simples fato de serem gays, lésbicas, transexuais, bissexuais ou travestis. Tem toda uma luta das mulheres contra uma sociedade patriarcal e contra o machismos, que mata mulheres (feminicídio) diariamente, basta citar o caso mais recente da Remis, estudante de Pedagogia da UFPE que foi morta e enterrada pelo namorado no quintal de casa. Esse caso ainda tem um agravante muito sério que foi a omissão e a mais completa negligência da polícia em tentar resolver o caso. Se não fosse a garra e a determinação das amigas e alunas da UFPE o caso não teria seria sido resolvido e que ia virar apenas mais uma mulher desaparecida. Mais um crime sem solução. Um número a mais na estatística da morte de mulheres.





Vou terminar indicando dois textos muito bons sobre o tema do porque ensinar gẽnero nas escolas. Um é o do site Justificando e o outro da Revista Fórum.

Bem, o mundo muda a partir de nós. Se eu mudar o mundo muda. E na mudança do mundo um futuro muito melhor é possível. E como toda mudança começa primeiro em casa e depois na escola. Por isso vamos começar a mudar o nosso jeito de olhar o mundo e de ensinar nossos filhos para que a humanidade tenha uma chance no futuro.

Abraços

Robson Freire

Obs.: As imagens utilizadas na postagem são os cartões premiados pela ONU no 1º Concurso de Arte de Cartões LGBTI por ocasião da campanha da ONU chamadaLivres e Iguais”, que tem por objetivo aumentar a conscientização sobre a violência e a discriminação homofóbica e transfóbica e promover um maior respeito pelos direitos das pessoas LGBT, em todos os lugares do mundo. (podem ser vistas aqui também todas as imagens premiadas na página do Facebook da ONU)


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O ACNUDH lançou ainda uma cartilha sobre o tema, também disponível em português por meio de uma parceria com o UNAIDS no Brasil.

O livro, de 60 páginas e com o título “Nascidos Livres e Iguais”, foi concebido como uma ferramenta para ajudar os Estados a compreender melhor as suas obrigações e os passos que devem seguir para cumprir os direitos humanos de pessoas LGBT, bem como para os ativistas da sociedade civil que querem que seus governos sejam responsabilizados por violações de direitos humanos internacionais. Acesse aqui a publicação.





A ONU tem outros trabalhos muito importantes no apoio das causa e criando uma rede de proteção e informação as pessoas da causa LGBTI. Tem uma Cartilha informativa sobre a Proteção de Pessoas Refugiadas e Solicitantes de Refúgio LGBTI, que é uma publicação conjunta da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e do Escritório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH), no marco da campanha Livres & Iguais da ONU no Brasil. A publicação tem o objetivo de promover o acesso à informação para esse grupo de pessoas e sensibilizar comunidade de acolhida, buscando elucidar quem são essas pessoas, quais são as dificuldades e desafios que elas enfrentam, assim como mostrar quais são os caminhos para melhor as acolher e proteger.






Tem também um manual da ONU sobre direitos LGBT incentiva cultura de inclusão nas empresas, que foi feito a partir de histórias reais de pessoas que sofreram discriminação no ambiente profissional, o manual Construindo a igualdade de oportunidades no mundo do trabalho: combatendo a homo-lesbo-transfobia oferece diretrizes para a promoção dos direitos humanos de pessoas LGBT no mundo do trabalho. Esse documento é fruto de uma construção conjunta entre organismos da ONU (PNUD, OIT e UNAIDS) e 30 representantes de empregadores, trabalhadores, governo, sindicatos e movimentos sociais ligados aos temas LGBT e HIV/AIDS.





Breve história crítica dos feminismos no Brasil

Excluídas da história oficial, as mulheres fazem do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência. Neste ensaio, publicado na...