Por que programas federais de segurança não funcionaram até hoje no Brasil?

A intervenção no Rio de Janeiro é inédita. Nunca antes um governador perdeu as rédeas do comando da segurança do seu Estado para o governo federal. Por outro lado, essa é a sétima tentativa de um presidente da República de conter a violência no país desde 2000. Na média, houve um novo anúncio federal a cada três anos.


Imagem - Jornal do Brasil




A reportagem é de Amanda Rossi e Leandro Machado, publicada por BBC Brasil, 28-02-2018.



Em 2000, Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Nacional de Segurança Pública, que vigorou por apenas dois anos. Já Luiz Inácio Lula da Silva lançou, em 2007, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Além disso, tentou criar o Sistema Único da Segurança Pública - uma espécie de SUSpara a área da segurança. Encaminhado para o Congresso Nacional em 2007, está em tramitação até hoje.

Dilma Rousseff não deu continuidade aos planos do seu padrinho político. Em 2012, criou o Programa Brasil Mais Seguro, e, em 2015, o Programa Nacional de Redução de Homicídios. Já Michel Temer deu início ao Plano Nacional de Segurança em 2017. E, agora, a intervenção no Rio.

O levantamento dos diferentes planos federais foi feito pelos especialistas emsegurança pública Isabel Figueiredo, Renato Sérgio de Lima e Sérgio Adorno. Em comum, nenhum deles foi capaz de conter o avanço da violência no Brasil.

Um dos sinais do acirramento da crise de segurança é a guerra entre facções criminosas. Antes concentradas no Sudeste - o PCC, principalmente em São Paulo, e o Comando Vermelho, no Rio - essas organizações criminosas se multiplicaram pelo país. Em 2006, no Amazonas, foi criada a Família do Norte; em 2012, o Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte; em 2013, no Acre, o Bonde dos 13; por volta de 2015, no Ceará, os Guardiões do Estado - entre vários outros.

Além disso, regiões antes pacatas entraram no foco da violência. Entre 2000 e 2016, enquanto a taxa de homicídio do Sudeste caiu pela metade, a do Norte e Nordestedobrou. Nas cidades menores, a quantidade de mortes violentas cresceu mais do que nas metrópoles. Na soma do país, o número de assassinatos passou de 47,9 mil para 61 mil por ano.

Mas por que os sucessivos planos federais não foram tiveram sucesso? Especialistas ouvidos pela BBC Brasil apontam algumas razões.




Brasil nunca teve uma política de Estado para a segurança


"A principal razão para os programas não serem efetivos é que falta um desenho claro de uma política de segurança no Brasil", afirma Isabel Figueiredo, especialista em direito constitucional e segurança, membro do Fórum de Segurança Pública.

"Veja o caso da saúde. O grosso do SUS não muda com o governo A ou governo B. Já a segurança está ao sabor da política. A consequência são as interrupções dos programas", compara.

Alberto Kopptike
, que atuou na área de segurança pública durante parte dos governos Lula e Dilma, também usa o SUS como exemplo. Para criar o sistema de saúde, primeiro foi elaborado seu conceito e, depois, montada uma estrutura nacional para implementá-lo, como Ministério da Saúde, Datasus, Fundo Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Para Kopptike, esse mesmo processo precisaria ocorrer com a segurança pública.

"O SUS não é um programa, é a política nacional de saúde do Brasil. Já na segurança pública, foram criados apenas programas", completa Kopptike.

Segundo Figueiredo, o problema vem desde a Constituição de 1988, "que é detalhada nas áreas de saúde e educação, mas pífia com relação à segurança pública".

O trecho constitucional que trata da área apenas lista quais são as forças de segurança, estabelece qual é a função de cada uma e a quem respondem: as Polícias Militar e Civilficam sob comando dos Estados e as Polícias Federal e Rodoviária Federal estão sob responsabilidade da União. As Forças Armadas não são um braço da segurança pública.

O Susp (Sistema Único da Segurança Pública), idealizado no governo Lula, foi uma tentativa de suprir essa lacuna, mas não avançou. Agora, o Ministério da Justiçadiz que vai publicar uma política nacional - embora não dê datas. "Ela reunirá, pela primeira vez, um conjunto de princípios, diretrizes e objetivos de segurança pública a serem implementados pelos três níveis de governo de forma integrada e coordenada", disse a pasta, por nota.



Projetos para segurança são reações a episódios de crise


Na falta de uma política de Estado para a segurança pública, os planos para a área costumam ser lançados em resposta a crises, dizem especialistas.

Foi o caso do primeiro plano de segurança, no governo FHC. Em junho de 2000, um ônibus foi sequestrado no Rio de Janeiro e uma mulher grávida foi feita refém. O resultado foi trágico: a vítima foi morta pela polícia dentro do ônibus; o sequestrador, dentro do camburão. O caso, conhecido como "ônibus 174", chocou o país. O plano federal foi lançado em seguida.

Dezoito anos depois, a intervenção federal no Rio também foi decretada na sequência de cenas de violência durante o Carnaval. No início de 2017, o governo Temerdivulgou seu plano de segurança após massacres em presídios do Amazonas e Roraima, que evidenciaram a extensão da disputa das facções no país. Além disso, acredita-se que o Pronasci, de Lula, teve a influência dos ataques do PCC em São Paulo, em maio de 2006.

"Uma política de segurança pública eficiente não é um milagre. Não dá resultado imediato, mas no médio e longo prazo. Não é diferente da educação. O problema é que a crise na segurança normalmente mobiliza de tal forma a opinião pública que muitos governantes acabam indo para uma lógica de curto prazo, paliativa, midiática. Mas o importante é pensar na causa do problema, em algo sustentável", afirma Figueiredo.

"A gente precisa deixar de ser reativo, só atuando em crises, e começar a criar estrutura para mudar a forma como a gente faz segurança pública. Aí, o governo federal tem que entrar com recursos", diz Kopptike.



Não há financiamento garantido


A maior parte dos gastos da segurança pública fica nas mãos dos Estados, que custeiam as Polícias Militar e Civil. Segundo o Anuário de Segurança Pública, o Brasil gastou R$ 81 bilhões com o setor em 2016, sendo que mais de 80% do valor veio dos cofres estaduais. Já o governo federal arcou com cerca de 10% dos gastos.

Segundo especialistas, seria preciso aprimorar o financiamento federal da segurança pública. Em primeiro lugar, a área não conta com garantia de recursos, ao contrário da saúde e da educação, por exemplo, que obtêm uma fatia determinada das receitas do país. Também difere da área penitenciária, que fica com um percentual da arrecadação das loterias.

"Não é razoável que todo o ano seja necessário brigar pelo orçamento da segurança pública. Se não há garantia orçamentária, como fazer ações que dependem de recursos no ano que vem? É muito difícil para a continuidade", diz Figueiredo.

Em tese, desde o plano de segurança pública de FHC, em 2000, o Brasil conta com um fundo específico para financiar o setor na esfera federal. É o Fundo Nacional de Segurança Pública. Porém, ele está longe de dar conta da demanda de financiamento. Em 2016, recebeu apenas R$ 313 milhões - equivalente a 0,4% dos custos totais da segurança pública brasileira ou a 5% dos custos da Polícia Federal.

"É preciso criar um pacto federativo na área de segurança pública, que defina responsabilidades e atribuições do nível federal, do nível estadual e do nível municipal, e também estabeleça padrões e formas de financiamento do setor, de forma consistente e permanente", afirma José Luiz Ratton, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que atuou em um programa de combate à violência no Estado.

"Já existe acúmulo técnico para que isso seja feito, mas sucessivas administrações do governo federal foram incapazes de construir uma agenda política de reformas nesta área, com receio de responsabilização por um tema tão sensível", conclui.



Falta articular a inteligência das diferentes forças de segurança


"O Brasil não tem uma coordenação de inteligência. É um quebra-cabeça de informações. Cada (órgão de segurança) tem um pedacinho para encaixar. O problema é que cada um usa a informação que tem para se valorizar", afirma José Vicente da Silva, coronel reformado da PM, que atuou no programa de segurança de FHC.

Ele dá como exemplo o Rio de Janeiro: "Como enfraquecer as facções criminosas no Rio de Janeiro? É preciso sufocar a logística de acesso a drogas, munição e arma. Para isso é preciso inteligência. Se tem articulação do governo federal com os Estados fica mais fácil identificar o fluxo que alimenta a economia do crime".

Alberto Kopptike concorda. "O PCC, por exemplo, é uma facção nacional. Está em metade dos Estados brasileiros, em outros países da América Latina. (Para enfrentá-lo), é preciso articular a inteligência da segurança pública no Brasil, (juntando informação) das forças federais e estaduais."



PF deveria atuar mais no combate ao tráfico


Três especialistas ouvidos pela BBC Brasil, de diferentes linhas políticas, disseram que a Polícia Federal precisa atuar mais no combate ao tráfico de drogas e armas. Essa é, inclusive, uma das funções da PF previstas pela Constituição.

"A gente precisa de uma Lava Jato das armas, uma Lava Jato das drogas. É legal que a PF esteja combatendo a corrupção - e tem que continuar. Mas é importante que também entre na segurança pública", afirma Kopptike.

"A cobrança por ações da PF para combater a criminalidade violenta tinha que ser mais dura. A Lava Jato é importante. Mas fora isso é preciso priorizar a criminalidade violenta", opina da Silva.

"Nos últimos anos, para bem ou para o mal, a PF fez a escolha do negócio dela: corrupção. De fato, nunca antes nesse país, a PF esteve tão focada no combate à corrupção. Por outro lado, não vemos esse mesmo esforço da força no combate à criminalidade violenta, que é atribuição dela e acaba atingindo população", diz Figueiredo.

Cerca de um quinto das operações da Polícia Federal em 2016 foram relacionadas ao tráfico de drogas - 121 de um total de 550.



Corrupção policial nos Estados


Outro ponto apontado pelos especialistas é a dificuldade de combater a corrupção policial nos Estados, área que deveria contar com a intervenção federal.

"Nenhuma polícia pode ser eficiente se for corrupta. O governo federal poderia tornar o combate à corrupção policial uma prioridade. Inclusive, enviar a PF para investigar a relação das polícias com o crime organizado", opina o coronel reformado José Vicente da Silva.

Alberto Kopptike ressalta a importância da União no combate à corrupção policialcitando o exemplo da Inglaterra, que faz uma avaliação técnica das polícias. Isso poderia ser feito no Brasil, segundo ele. "Precisamos de uma espécie de Lei de Responsabilidade Fiscal, mas de gestão das polícias."

Em 2017, por exemplo, um policial civil do departamento de narcóticos de São Paulo, o Denarc, foi acusado de roubar e vender drogas no centro da capital paulista, além de avisar traficantes da Cracolândia sobre operações que iriam acontecer na área. Ele foi pego em uma escuta telefônica conversando com um homem apontado como revendedor de drogas na região.

As polícias já têm órgãos de controle e investigação de seus quadros, como as corregedorias. Porém, críticos costumam dizer que, pela proximidade com as corporações, sua atuação não é forte o suficiente. Outro serviço de controle social são as ouvidorias - em São Paulo, por exemplo, o ouvidor é escolhido pelo governador do Estado a partir de uma lista tríplice de candidatos votados por grupos de defesa dos direitos humanos.



Prisões lotadas favorecem expansão de facções


O sistema prisional superlotado é um caldo propício para o surgimento e crescimento das facções. Algumas delas, como o PCC, surgiram nos presídios, reivindicando melhorias das condições internas. Alianças, cisões e ordens de crimes costumam ocorrer dentro das unidades prisionais. Novos membros, inclusive, costumam ser "batizados" atrás das grades.

Os planos de segurança federais não conseguiram reverter esse problema. Pelo contrário, o número de presos no país não para de aumentar: passou de 232 mil pessoas, em 2000, para 727 mil, em 2016. Já o número de vagas é cerca de metade do total de detentos.

"A estrutura prisional superlotada acaba fomentando a abertura de franquias de facções de mais nome. É como uma cooperativa de crime e proteção", afirma José Vicente da Silva.

Um dos fatores ligados ao alto encarceramento é a política de drogas brasileira. Cerca de um terço dos presos são acusados de tráfico. A minoria, apenas 1 de cada 10 pessoas encarceradas, responde por homicídio.

"Só aumentar a quantidade de presos não adianta, estamos alimentando as facções. Com essa visão, você não apaga os incêndios, mas coloca gasolina. É preciso ver a qualidade de quem está sendo preso - traficantes de armas, homicidas", completa Kopptike.

A maior parte do sistema prisional é gerido pelos Estados. No governo Lula, foram criados os presídios federais, menos lotados e com melhores condições de segurança. No entanto, são apenas quatro, e abrigam uma ínfima parte dos presos - menos de 500.



Fazer cocô: um tabu feminino

As estimativas são de que, no mundo ocidental, a cada cinco mulheres, três têm prisão de ventre. “Os hábitos de higiene e a vivência da sexualidade, de modo geral, sempre foram mais rigorosos com as mulheres”, diz a psicanalista Beth Mori.



Foto: Gabor Monori/ Unsplash




Fim de tarde na repartição. O sujeito tira da mochila uma sacolinha de supermercado e, gentil, oferece uma das frutas às colegas. “É ameixa. Tá docinha. E faz bem pra vocês”, diz ele. Diante de um certo clima de timidez, ele emenda: “Mulheres têm problemas para ir ao banheiro, não?”


Médicos gastroenterologistas, que cuidam da saúde do aparelho digestivo, e coloproctologistas, especializados em doenças do intestino, colo e ânus, dizem que sim. As estimativas são de que, no mundo ocidental, a cada cinco mulheres, três têm prisão de ventre.


Em 2012, uma pesquisa da Federação Brasileira de Gastroenterologia trouxe mais detalhes sobre o problema em território nacional. Das 3.029 entrevistadas em nove capitais e no Distrito Federal, 66% (ou 2 mil) declararam ter problemas intestinais, entre eles, gases, inchaço, sensação de peso e prisão de ventre. É uma multidão, literalmente, enfezada.

A constipação – o termo técnico para prisão de ventre – se caracteriza por sintomas como dificuldade para fazer cocô, sensação de evacuação incompleta e fezes endurecidas ou ressecadas em, ao menos, 25% das idas ao banheiro durante um período de seis meses. “A frequência das evacuações, em si, pode ser muito variável, de três vezes ao dia a três vezes na semana”, explica o gastroenterologista Eduardo Usuy.

“Às vezes, a pessoa vai ao banheiro a cada dois ou três dias, mas evacua com rapidez e se sente aliviada. As fezes saem inteiras, sem nenhum desconforto. Isso é muito mais saudável do que alguém que vai ao banheiro todo dia, mas sempre com dificuldades”, detalha.

Mulheres são vítimas preferenciais da constipação devido à ação dos hormônios femininos – em especial a progesterona, que age mensalmente no corpo para prepara-lo para receber o óvulo fecundado. “Os mecanismos ainda não são muito compreendidos, mas o fato de a prisão de ventre ser uma queixa comum nos dias que antecedem a menstruação, quando os níveis de progesterona são maiores, sustenta a hipótese de que esse hormônio é o grande vilão da história”, afirma o ginecologista Bruno Ramalho.

“Na TPM, chego a ficar uma semana sem ir ao banheiro. Quando a menstruação chega, porém, meu organismo dá uma ‘limpada’, consigo fazer até duas vezes ao dia”, relata a secretária Lia*, 39 anos.

É por conta dos efeitos da progesterona que cerca de 30% das grávidas sofrem com a prisão de ventre. Na gestação, os níveis desse hormônio sobem muito, para garantir que o embrião permaneça fixado ao útero. Há também o aparecimento da relaxina, hormônio produzido pela placenta, que também contribui para a vagareza do intestino nessa fase.

“Eu fazia cocô duas vezes ao dia antes de engravidar e não conseguia entender como as minhas amigas tinham prisão de ventre. Depois da minha primeira gestação, nunca mais fui a mesma”, lamenta a jornalista Daniela*, 32 anos. “Hoje, eu tento usar algumas estratégias, como tomar suco de couve ou comer mamão, mas, ainda assim, é uma luta”, conta.





Mente travada, corpo travado

As causas da constipação, contudo, vão muito além da fisiologia do corpo feminino e, em grande parte dos casos, têm raízes psicológicas e emocionais. “Meu intestino é doméstico. Só funciona na minha casa”, afirma a servidora pública Elena*, 28 anos, que tem dificuldade para fazer cocô até mesmo no banheiro do hotel, em viagens. “Na primeira vez em que viajei com meu marido, ainda como namorado, depois de quatro dias, ele perguntou: você não caga, não?”, lembra ela, aos risos.

Fazer as necessidades fora de casa é praticamente um tabu entre as mulheres. Das seis entrevistadas para esta reportagem, todas se declararam desconfortáveis em evacuar em banheiros alheios – por mais limpos que sejam – e três disseram que só fazem no conforto do lar.

“Quando eu me casei, fiquei mais de um mês voltando à casa da minha mãe sempre que queria fazer cocô, até me adaptar ao meu novo ambiente”, lembra Lia. A secretária também já perdeu a conta de quantas vezes saiu no meio do expediente para ir se aliviar em casa – por sorte, mora relativamente perto do trabalho.

Mas, afinal, qual é o problema, se todo mundo caga?


“Tenho medo de feder. De acabar o papel”, diz a empresária Joana*, 36 anos. “A nossa cultura coloca a evacuação como algo sujo, repulsivo, que deve ser escondido dentro de casa. Esse tipo de preconceito é uma das causas da constipação”, afirma o gastroenterologista Eduardo.

A psicanalista Beth Mori lembra que esse tipo de bloqueio tem relação, inclusive, com o machismo enraizado na sociedade. “A menina é estimulada, desde sempre, a não expor publicamente seu corpo, a cuidar da sua área genital de maneira muito mais reservada do que o menino”, contextualiza. “Os hábitos de higiene e a vivência da sexualidade, de modo geral, sempre foram mais rigorosos com as mulheres”, acrescenta ela, membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília.


O efeito da bomba

No desespero e depois de muitos dias sem ir ao banheiro, muitas mulheres acabam recorrendo ao uso de laxantes. A prática, sem acompanhamento médico, é arriscada: pode fazer com que o organismo “se vicie” no medicamento ou, até mesmo, com que a pessoa passe por situações ainda mais desconfortáveis.

Que o diga a servidora pública Dora*, 58 anos. Em 1997, ela sobreviveu a um acidente grave, que deixou sequelas psicológicas. Ainda em choque, ela tinha pesadelos e crises de insônia.

“Nos dias seguintes, eu simplesmente parei de prestar atenção ao meu corpo e, quando me dei conta, devia estar há quase uma semana sem ir ao banheiro”, lembra ela. Decidida a resolver a questão, a servidora pública tomou um laxante. “O problema foi que, quando aquilo veio, foi como uma bomba, rasgando tudo e deixando um rastro enorme de sangue na privada. Nem para parir foi tão sofrido”, conta ela, hoje com bom humor.

Dora teve o que os especialistas chamam de fecaloma, quando a fezes endurecem de tal forma que é preciso fazer uma lavagem intestinal para desobstruir o canal.

O que fazer, então, para não chegar a esse ponto?


Os especialistas enumeram três aspectos que contribuem para o melhor funcionamento do intestino: ingestão de alimentos ricos em fibras, atividade física e consumo de água. “Infelizmente, não há uma solução definitiva para a prisão de ventre. Quem tem o problema precisa estar sempre vigilante”, diz Eduardo Usuy.

“É um saco ter que ficar colocando farelo de trigo na comida”, desabafa a servidora pública Elena. O farelo de trigo é rico em fibras e muito indicado por nutricionistas para quem sofre com o problema. Elena também reclama das restrições alimentares. “Eu adoro banana, mas, se comer demais, certeza que ficarei quatro ou cinco dias sem fazer cocô”, diz.

Além dos cuidados com a alimentação, o consumo de água e a prática de exercícios físicos, Eduardo recomenda que todos, mulheres e homens, prestem mais atenção ao cocô. O formato, a consistência e a cor (veja quadro) podem indicar problemas mais sérios.

“Acho que todo mundo com um comportamento ‘anormal’ do intestino deve procurar ajuda médica”, defende a jornalista Aline Teles, 35 anos, que sofre com a prisão de ventre desde que era menina. De uma hora para a outra, ela passou a ter diarreias intensas e, ao investigar a causa, descobriu que tinha retocolite ulcerativa, uma doença inflamatória na região do intestino e do cólon.

Finalmente, o “não cocô” também pode dizer muito sobre nós mesmas. “A moral, a vergonha, o nojo são aspectos que se constituem no processo educativo, de formação”, lembra a psicanalista Beth Mori. Pensar analiticamente sobre isso pode ser uma forma de autoconhecimento e também de lidar com muitas questões do dia-a-dia.


*nomes fictícios a pedido das entrevistadas.



Consentimento no sexo também é algo a ser ensinado aos nossos filhos


“A pornografia é cada vez mais violenta e também mais acessível. Vamos deixar que esse seja o referencial de sexo de nossos meninos e meninas?”, questiona Tayná Leite


Arte: Anton Nefedov



por TAYNÁ LEITE em Az Mina


O mundo parece mesmo estar mudando. E para melhor! Mulheres se levantam contra o assédio em diversas partes do mundo e nas mais variadas indústrias para dizer chega! Para compartilhar histórias e abrir cicatrizes mal ou bem curadas, necessárias para expor a ferida que precisa ser limpa. Na avalanche das denúncias, em meio a uma intensa reação contra esses movimentos (falaremos mais sobre isso em outro post, mas por enquanto aqui vai um artigo para saber mais como isso funciona), entre denúncias pesadas contra figurões e outras em que as pessoas se dividem entre achar o que foi e que não foi assédio (vide o caso Aziz Ansari), além de muita discussão boa (e outras nem tanto) sobre os limites do consentimento, eu enquanto esposa e mãe senti falta de uma outra discussão sobre a qual pouco se debate: o consentimento em relações estáveis.


Me peguei debatendo sobre isso com amigas e pensando: como explicar a meu filho que a namorada/noiva/mulher não lhe deve nada, muito menos sexo e nem acesso irrestrito a seu corpo. Como lidar eu mesma com a sensação que por vezes bate de que não posso dizer não muitas vezes seguidas, de que o sexo faz parte dos votos, dos deveres e direitos do casal, em especial do homem?


Nas rodinhas de mulheres casadas, mães ou não, mas principalmente mães, a “preguiça” do sexo é motivo de piada, e não é raro – aliás é bem comum – compartilharmos o quanto nos sentimos muitas vezes na obrigação de “comparecer”. Aprofundando um pouco mais percebemos que muitas vezes mulheres transam para evitar conflitos, para deixar o cara mais calmo, para ganhar afeto (se você quer afeto, peça afeto, se você quer sexo, transe!). Agimos como se fosse a nossa obrigação, não dizemos não (ou inventamos desculpas para poder dizer não, como a famosa dor de cabeça) e ficamos com a mesma sensação de ser usada. Já faz um mês que você está “regulando”? O homem está começando a ficar impaciente? O que fazer? Ao invés de mandar ELE se resolver sozinho, a gente faz o quê? Pensa: “melhor fazer um boquetinho pra resolver a situação do que ele ir procurar na rua!”. E fazer boquete se sentindo obrigada é o quê?

Sabia que o Código Civil tratava o estupro marital como “débito conjugal” até 2003?

Quantas mulheres foram e são estupradas com frequência por seus maridos? Quantas não foram obrigadas a se casarem com 14, 15, 16 anos quando muitas vezes ainda brincavam com bonecas? Quantas chegaram à sua noite de núpcias sem sequer saberem o que ia acontecer? Uma conhecida conta com a maior graça a história de que a sua avó se casou e saiu correndo de volta para a família na noite de núpcias, pois ficou assustada com o que o marido queria lhe fazer. Nunca tinha visto um pinto, muito menos duro, muito menos querendo penetrá-la. De acordo com o relatório “Estupro no Brasil, Uma Radiografia Segundo Dados da Saúde”, divulgado pelo Ipea em 2014, 9,3% do abuso sexual sofrido por mulheres adultas são praticados pelo cônjuge e 1,6% pelo namorado. Embora isso seja realmente perturbador não é disso que estou tratando aqui.


O que eu quero falar aqui para vocês e para o meu filho é sobre o “consentimento tácito” que a sociedade acha que nós damos ao nosso parceiro quando aceitamos viver um relacionamento duradouro. Sobre a ideia encucada desde sempre nas nossas cabeças (e, pior, na deles!) de que “homem precisa mais de sexo do que mulher”. De que “se não tem em casa vai procurar na rua”.


Eu vejo todos os dias posts em grupos de mães em que mulheres aconselham umas às outras a retomarem as atividades sexuais no pós-parto mesmo sem vontade, mesmo sem lubrificação, mesmo com dor, porque isso “é obrigação do casal”. Muitas vezes se tenta disfarçar a violência por trás disso, alegando que seria da mesma forma se a mulher quisesse sexo e o homem não.


Não seria!


Uma amiga me confidenciou que quando ela era criança a mãe lhe disse que se não fizéssemos sexo com o homem ele ficava louco. Isso se transmuta em uma crença de que era nossa função, enquanto mulheres, manter a sanidade mental daquele homem que, afinal de contas, nos escolheu e nos tirou da desgraça de ser uma mulher só, na cama. No final das duas últimas relações (todas de longo prazo sendo que da última nasceu um lindo menino) ela acreditava que o problema de não querer fazer sexo era um defeito dela, que ela era responsável pelo término, pois é muito difícil para nós mulheres enxergamos as milhares de razões pelas quais perdemos a libido, sendo uma das mais importantes o total e absoluto descomprometimento e a falta de esforço dos parceiros em nos manter com tesão. Mesmo ela, que sempre foi uma pessoa que gostava muito de sexo, quando viu seu desejo sumir, sofreu as consequências no casamento. Ele se revoltou e “foi para vida”. E ela ? Ela sequer se questionou se há algo de errado com a sua sexualidade e com a sua forma de encarar essa questão.


Precisamos urgentemente desconstruir a ideia de que estar em um relacionamento autoriza automaticamente o acesso ao seu corpo sem seu desejo e consentimento (naquele dia, naquela semana ou na vida!). Ter isso claro para si e ensinar a nossas meninas e meninos é essencial!


Eu tenho feito esse exercício cada vez. Faz uns 5 anos talvez que eu comecei a não mentir mais sobre não querer. Não digo mais: “estou cansada” se não estou e apenas não estou a fim. Digo: “não estou com vontade!” ou “não quero hoje”. Sempre me esforço para isso e vejo que tem sido bom para o relacionamento por um lado pois ele me respeita e, se dou brecha também se esforça mais a me fazer ficar com vontade. Nós precisamos mesmo nos exercitar para impor nossos limites, conversar com eles sobre isso. Eles não sabem que nós estamos “nos obrigando”. Eles não entendem essa imposição social pois não é a deles. Agora, se ele for embora por causa disso o problema é DELE não nosso!


Amor e desejo não estão necessariamente ligados. Desejo e disposição muitas vezes não andam juntos (especialmente em um mundo em que mulheres vivem sobrecarregadas). Podemos amar intensamente e não estar com tesão por trocentos mil motivos – e em muitos casos inclusive a falta de interesse deles pelo nosso prazer – e isso não é necessariamente uma rejeição. Como disse a minha amiga acima citada: eles precisam ser menos infantis no seu sentimento mimado de rejeição egóica pintóica.

Enquanto mães e mulheres precisamos também abordarmos o papel da pornografia na concepção de sexo e prazer.

Precisamos falar aos nossos meninos e meninas sem tabus sobre o quão falsos e inverídicos são esses modelos. O cara não vai sair pelado do banheiro e a mulher vai estar com a perereca saltitando sem nenhuma preliminar. Eles precisam saber disso. Eles precisam saber dar prazer a uma mulher e as meninas precisam saber como se dar prazer para poder identificar o que não gostam, o que não querem e poderem dizer não.


Soube de um outro caso em que o cara broxou com a menina e então perguntou se poderia colocar um vídeo. Ele colocou o vídeo dele comendo uma puta e se masturbou, ela não achou legal, mas também ficou lá quietinha vendo isso e o cara achando aquilo tudo super excitante. Uma outra deu o cu sem estar com vontade por força da insistência do marido, depois ficou chorando como se tivesse sido estuprada e, ainda por cima, possivelmente culpada por estar se sentindo assim. E sim, isso gera uma sensação de vazio, uma tristeza que é de fato difícil de ser nomeada ou até mesmo descrita.


Sim, essas reflexões são importantíssimas e muito doloridas também. Todas nós já fizemos sexo sem vontade achando que era nossa obrigação e isso é realmente fruto de uma sociedade que:
  1. Acha que nossa função na vida é dar prazer aos homens
  2. Faz eles acreditarem que sexo é aquilo que eles veem na pornografia.


“Mas Tayná, como é que eu vou falar sobre isso com meu filho? Isso é muito constrangedor!”


Falando! Não tem outro jeito! Não falamos sobre como ser uma boa pessoa, sobre respeitar os outros, sobre ser honesto e sobre ter empatia com o próximo? Pois então, todos esses temas podem ser usados para puxar o assunto do respeito ao corpo das meninas quando a sexualidade deles estiver despertando. Pode ser ao assistir uma novela, um filme ou um seriado com aqueeeeelaaaa cena constrangedora. Por que não tomar a oportunidade para falar sobre o assunto?


Precisamos encarar que a pornografia é ao mesmo tempo cada vez mais violenta e também mais acessível. Não é mais a revista ou o filme erótico que era um trampo pra descolar na nossa época. Está no celular do amiguinho, em tudo quanto é lugar. Precisamos partir da premissa de que eles terão (se já não tiveram) acesso a ela. Podemos assumir isso e tomar as rédeas do aprendizado, ou enfiar a cabeça na areia e deixar que esse seja o referencial de sexo de nossos meninos e meninas.


O que você prefere?



A ascensão eleitoral do conservadorismo evangélico na América Latina

Com diferentes ritmos e níveis de avanço territorial ao longo da América Latina, com mais sucesso em alguns países que em outros, o fato é que o discurso político-eleitoral dos líderes evangélicos está cativando as mentes e corações dos eleitores




Por Carlos Martínez García - via Carta Maior


Um espectro ronda a América Latina, o espectro do conservadorismo evangélico. Não é o único espectro que peregrina pelo continente, mas sim um que tem um atrativo crescente para consideráveis porcentagens da população latino-americana.


Com diferentes ritmos e níveis de avanço territorial ao longo da América Latina, com mais sucesso em alguns países que em outros, o fato é que o discurso político-eleitoral dos líderes evangélicos está cativando as mentes e corações dos eleitores. E está capturando não somente os do seu próprio terreno, o da população que se identifica como protestante/evangélica, o que possibilita aos evangélicos conservadores sonhar com alcançar as esferas de poder que antes pareciam impossíveis.


Entre a comunidade interessada em compreender este fenômeno do protestantismo nas regiões mais pobres, e que antes não haviam mostrado interesse por essa proposta religiosa, despertou controvérsia uma obra publicada em 1990, de David Stoll, chamada Is Latin America Turning Protestant?: The Politics of Evangelical Growth (“A América Latina Está se Tornando Protestante? O Crescimento Político dos Evangélicos”, da Editora da Universidade da Califórnia, Estados Unidos). Intensificou a discussão e a análise de David Martin, especialista em tendências religiosas e seus efeitos sociais, com seu livro Tongues of Fire. The Explosion of Protestantism in Latin America (“Línguas de Fogo, A Explosão do Protestantismo na América Latina”, da Editora Blackwell Limited, Oxford, Reino Unido, também de 1990).


Os autores concordavam sobre o fato em si, o rápido crescimento do protestantismo evangélico, mas cada um fez sua própria avaliação sobre as causas do fenômeno, com pontos coincidentes e divergentes. Autores latino-americanos ou residentes em algum país do continente colaboraram para ampliar as perspectivas e responder a pergunta sobre as razões que impulsavam essa propagação do protestantismo na América Latina.


Se levantaram várias questões, entre elas: esse crescimento do protestantismo é acompanhado por alguma mudança cultural e social modernizadora? O protestantismo que se reproduz vertiginosamente consolida valores democráticos? Fortalece a criação de cidadania, entendida esta como defensora de seus direitos numa sociedade diversa e que ao mesmo tempo respeita outras identidades e convicções éticas? E finalmente: que efeitos isso tem sobre o princípio de laicidade do Estado, o vigoriza ou atua em seu detrimento?


Em termos gerais, o protestantismo que se assentou em terras latino-americanas a partir da segunda metade do Século XIX foi o de igrejas de crentes, que buscava conformar comunidades de associação voluntária, contrastantes com a religiosidade dominante (católica romana). No processo de formação de raízes, as primeiras gerações de protestantes latino-americanos adotaram o liberalismo como causa comum, por seu objetivo de romper o controle católico do Estado, para que as instituições públicas e as leis do país deixassem de favorecer a religião que durante séculos havia sido a oficial e excludente de outras.


Nas décadas recentes, os evangélicos latino-americanos parecem ter esquecido da luta dos seus antecessores por reconhecimento de seus direitos. Aquelas gerações defenderam fortemente a existência de um Estado laico, pois eram conscientes que só ele garantiria sua existência e crescimento, e nunca se propuseram a ser a religião dominante ou a penetrar no aparato governamental, para fazer do Estado uma instituição que impõe suas convicções espirituais e éticas ao conjunto da sociedade.


Paulatinamente, as lideranças evangélicas que mais têm crescido durante as décadas recentes, particularmente as neopentecostais, foram alimentando a tentação constantiniana, que consiste em ocupar os espaços de poder político para catequizar a sociedade. Por toda a América Latina, a criação de partidos políticos evangélicos, ou de inspiração evangélica, como o Partido do Encontro Social (México) ou o Partido Republicano Brasileiro (Brasil), comprovam a instrumentalização desse constantinismo (que deriva seu nome do imperador Constantino, o Grande, do Século IV), cujo anseio é o de transformar as sociedades com base numa agenda conservadora e contrária à diversificação da sociedade.


Esse sucesso político-eleitoral dos evangélicos conservadores, como o recente caso das eleições presidenciais na Costa Rica, ou a influência que tiveram no surpreendente resultado do referendo sobre os Acordos de Paz na Colômbia, há dois anos, seria um sinal potente de que o seu alcance não se restringe somente aos seus seguidores e também conquista votos da população não evangélica? Ou estaria o protestantismo conservador sintonizando com posições conservadoras já existentes na maior parte da população, e, em consequência, canalizando sua simpatia e apoio a uma corrente que expressa claramente valores com os quais se identifica?


Fato é que o discurso teológico-político do conservadorismo neoevangélico, muito rudimentar e simplificador em sua leitura da Bíblia, mostra um grande poder de convencimento sobre os setores da população, tanto de esquerda quanto de direita, que estão insatisfeitos com o establishment partidário pois consideram que estes fracassaram em construir sociedades mais justas e esperançosas. É justamente isso o que os candidatos evangélicos oferecem: esperança, num contexto desesperançoso, e nesse ponto eles acertam. Mas pode acontecer também que, como diz a narração bíblica na qual Esaú vendeu sua primogenitura por um prato de lentilhas, os desesperançados estejam vendendo suas esperanças por um mero prato de soluções mágicas.


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Carlos Martínez García é sociólogo, escritor, e investigador do Centro de Estudos do Protestantismo Mexicano




Maio de 1968: um convite ao debate

Cinquenta anos depois, é ainda mais necessário examinar em profundidade um movimento que indicou o esgotamento do capitalismo mas inspirou, ao mesmo tempo, a “renovação” pós-moderna do sistema




Por Erick CorrêaOutras Palavras

1968 constitui um evento de dimensão histórico-mundial (Wallerstein), assim como 1789-91, 1848, 1917, 1989-91, pois assinala um ponto de virada histórico suficientemente persuasivo para instaurar um novo world time (Eberhard). Particularmente contagiante, a expressão francesa da crise internacional, detonada em Paris no mês de maio, funcionaria como uma espécie de catalisador de outras revoltas antissistêmicas em arenas locais distantes como Varsóvia, Praga, Dublin, Berlim, Tóquio, São Paulo, Cidade do México ou Lima.

Devido a esta repercussão mundial da experiência francesa, convencionou-se nos meios jornalísticos e até mesmo acadêmicos reduzir 68 ao maio de 68, uma referência ao mês no qual a contestação de setores esquerdistas do movimento estudantil universitário explodiu nas barricadas da Rua Gay-Lussac, no entorno da Sorbonne em Paris. Já a referência a maio-junho de 68 incorpora o desfecho conclusivo da crise, quando o impacto causado pelos Acordos de Grenelle – pactuados, no fim de maio, pelo Ministério do Trabalho com a Confederação Geral do Trabalho (CGT), sob a direção do Partido Comunista Francês (PCF) –, somado à proibição das organizações revolucionárias mediante decreto governamental de 12 de junho, e a subsequente vitória eleitoral de De Gaulle, conseguiram finalmente canalizar as energias revolucionárias do movimento para saídas reformistas.

Contudo, este ano turbulento não começou nem terminou em 1968, algo que a expressão anos 68 também tenta exprimir. Na Itália, por exemplo, a contestação eclodiu um ano antes da rebelião na França, arrastando-se por mais dez anos.


A cada decênio, repõe-se uma situação de disputa pela memória e significado de 68, sempre renovada por uma série de publicações acadêmicas e editoriais jornalísticos que polemizam sobre o anacronismo ou, pelo contrário (a depender do ponto de vista), sobre a atualidade ou contemporaneidade das aspirações libertárias e energias revolucionárias liberadas naquele ano.

Não há também consenso quanto ao seu impacto sobre a vida social, se este foi subestimado ou superestimado pelos protagonistas daquela geração. Afinal, 68 foi uma revolução social derrotada, ou tudo não passou de uma intentona hedonista e iconoclasta de perturbação do status quo pela juventude revoltada? 68 resultou na vitória da heteronomia e do individualismo pós-moderno ou simboliza um importante marco temporal nos processos de descolonização e de emancipação das populações submetidas às mais diversas formas históricas de opressão (patriarcal, heteronormativa, xenofóbica, étnico-racial, política)?

Algumas interpretações mais dogmáticas chegam a reduzir a história de 1968 a um tudo ou nada maniqueísta, incapaz de perceber a sua dimensão histórica real.

É nesse sentido, nos parece, que a provocação lançada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1984), de que o Maio de 68 não aconteceu, deve ser entendida: pois, se a luta não começou nas barricadas dos dias 10 e 11 de maio, tampouco ela terminou com as eleições de 23 e 30 de junho, mas se desenvolveu posteriormente também nas trincheiras do campo simbólico, isto é, nos conflitos ideológicos pela memória do evento. De fato, as interpretações sobre 68 dividem-se mesmo no interior de campos políticos afins, principalmente à esquerda do espectro sociopolítico, sobretudo na França, país onde o evento despertou as reações mais furiosas e apaixonadas. O caso dos antigos fundadores da revista Socialismo ou Barbárie (1949-67), Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, é exemplar nesse sentido. Para o primeiro, 68 foi uma revolta bem sucedida, enquanto que para o segundo, não passou de uma revolução fracassada.

Guy Debord, fundador de uma pequena, porém influente organização, a Internacional Situacionista (IS, 1957-72), constatou em 88 que nada havia sido até ali “tão dissimulado com mentiras dirigidas” quanto a história de 68. De fato, naquele mesmo ano, surgia pela primeira vez na França um livro sobre 68 produzido pelo campo néocon(neoconservador), chamado O pensamento 68, dos ideólogos Luc Ferry e Alain Renaut.

Vinte anos depois, no livro O pensamento anti-68 (2008), o filósofo Serge Audier alertava para o que chamou de trabalho de deslegitimação de 68, realizado por três atores principais, oriundos de campos políticos e intelectuais distintos, mas que convergiram na interpretação sobre aquele episódio: os gaullistas (retórica do “complô internacional”), os comunistas (retórica das “provocações esquerdistas”) e os neoconservadores (como o ex-presidente Nicolas Sarkozy), que pretendia liquidar a herança de maio de 68.

Em 2018, o atual presidente da França, Emmanuel Macron, restaurou a polêmica sobre o legado de 68 desde um ponto de vista modernisateurque, longe de liquidar com a herança de 68, pretende instrumentalizá-la, ressaltando as supostas características liberal-modernizantes do evento, enquanto oculta seus aspectos mais selvagens (como a greve geral de 10 milhões de trabalhadores com ocupação de fábricas e universidades).

Para os situacionistas[1], “de todos os critérios parciais utilizados para acordar ou não o título de revolução a tal período de perturbação no poder estatal, o pior é seguramente aquele que considera se o regime em vigor caiu ou se manteve. Esse critério […] é o mesmo que permite à informação diária qualificar como revolução qualquer putsch militar que tenha mudado o regime do Brasil, de Gana ou do Iraque”. A “prova mais evidente” do caráter revolucionário de 68, continuam os situacionistas, “para aqueles que conhecem a história do nosso século, ainda é esta: tudo o que os stalinistas fizeram, sem recuo, em todos os estágios, para combater o movimento, prova que a revolução estava lá”[2].

Debord, por sua vez, identificaria justamente na reação a 68 a origem do novo ciclo de dominação da sociedade do espetáculo, denominado espetáculo integrado, quando países de economia capitalista mais avançada (como França e Itália) passaram a incorporar, na tentativa de frear o avanço das forças revolucionárias liberadas internamente no decurso dos anos 1960-70, algumas das técnicas de governo empregadas tanto pelos regimes concentracionários de Stalin e Hitler, como pelas ditaduras militares dos países de economia capitalista mais atrasada (como Portugal, Espanha, Grécia, Chile, Argentina e Brasil) – sem, contudo, uma correlata supressão dos arranjos institucionais do chamado Estado de direito. Ao comentar a “estratégia da tensão” aplicada pelo Estado italiano contra o movimento del ‘77, Debord notou que “só se ouviu falar com frequência de ‘Estado de direito’ a partir do momento em que o Estado moderno, chamado democrático, deixou de ser democrático” (Comentários sobre a sociedade do espetáculo, § XXVI, 1988).

Como vimos, 68 não se restringe temporalmente aos meses de maio e junho, nem espacialmente à França. No Brasil, diferentemente de países formalmente democráticos como Estados Unidos, França e Itália, em 1968 a exceção se encontrava mais à vontade para mostrar o seu próprio rosto, dado que um processo de ruptura democrática já estava em curso no país há quatro anos. Mesmo assim, o ano de 68 foi marcado pela ascensão da resistência à ditadura instaurada em 64.

A luta dos secundaristas cariocas contra o aumento no preço das refeições, no início de 1968, que resultou na morte do estudante Edson Luís e nas mobilizações subsequentes, culminariam na Passeata dos Cem Mil, em junho. A partir do segundo semestre ocorreu a contra-ofensiva dos militares e dos apoiadores civis do regime. Em julho, a ocupação da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), na Rua Maria Antônia, foi destruída por forças militares e paramilitares de orientação anticomunista como o Comando de Caça aos Comunistas (com saldo de mais um estudante morto). Em agosto, forças de repressão invadiram a Universidade de Brasília (UnB), prendendo e espancando estudantes e professores. Em outubro, os militares invadiram o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, prendendo centenas de lideranças do movimento estudantil. Em dezembro, a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) fecharia ainda mais o regime, dando início aos chamados anos de chumbo. Com a posse do general Emílio Garrastazu Médici, então chefe do SNI [3], em 30 de outubro de 1969, o regime atinge o ponto de indistinção total onde “o serviço secreto não seria apenas mais um órgão da Presidência da República; seria a própria Presidência da República”[4].

Aos ouvidos brasileiros pós-2013, esse debate (pós-68) parece assumir contornos familiares. Afinal, é inquestionável o fato de que tanto 1968 quanto 2013 marcaram, guardadas suas respectivas particularidades históricas, períodos de acirramento das lutas sociais. Parece-nos que o traço mais distintivo entre uma conjuntura e outra, mais do que nas formas e conteúdos da contestação sociopolítica e da repressão policial, consiste no fato de que a violência estatal de 2013 foi operada, desta vez, não por um regime formalmente ditatorial como em 1968, mas por um regime formalmente democrático.

Se se quiser aplicar a crítica teórica do espetáculo – crítica essa fundamentalmente nucleada pela experiência de 68 – à crise sociopolítica brasileira de 2013-18, deve-se ler com especial atenção os escritos de Guy Debord nos anos 1980. Pois a crise e o esgotamento da chamada Nova República testemunham justamente a entrada definitiva do Brasil na era do espetáculo integrado.


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[1]As críticas téorica e prática dos situacionistas, indissociáveis da crise revolucionária francesa de maio-junho, ainda são pouco lembradas por nossa historiografia sobre 68. Quando mencionadas, incorre-se em algumas imprecisões. Olgária Matos reconhece, por um lado, que “foram os situacionistas que numa mescla de marxismo, anarquismo, surrealismo, fizeram a crítica mais certeira à sociedade ‘espetacular mercantil’, onde tudo se dá sob a forma da mercadoria e esta se dá como espetáculo” (1981, p. 68). Mas erra ao afirmar que “o dia 22 de março marcou a fusão entre o leninismo, o anarquismo e o situacionismo” (Idem, p. 69). De fato, o grupo 22 de Março ao qual ela se refere (fundado em 22/03/68), resultou de uma agremiação eclética que amalgamava, de modo geral, anarquistas, trotskistas e maoístas, mas não os situacionistas. A IS também não “se formou em Strasbourg” (Idem, p. 66), como afirma a autora, mas na Itália em 1957. Os situacionistas foram os pivôs do chamado Escândalo de Strasburgo, em 1966, um dos episódios antecipadores da crise de maio. Porém, apenas um dos membros da IS, Mustapha Kayathi (autor do manifesto A miséria do meio estudantil), detinha contato com estudantes radicais de Strasbourg. Cf. Paris, 1968: As barricadas do desejo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981. Já Daniel Aarão Reis Filho alude a “um texto dos anos 60” (A sociedade do espetáculo, de Guy Debord), para se compreender “o caráter mediático que a política assume desde então” (1999, p. 67). Ocorre que o livro de Debord é de 1967, e não explica 68 a posteriori, mas o antecipa em diversos aspectos, inclusive para além da questão “mediática”. Cf. “1968, O curto ano de todos os desejos”. In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice. Rebeldes e contestadores. 1968: Brasil/França/Alemanha. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 1999.

[2]Cf. “O começo de uma época”. In: Internacional Situacionista, n° 12, 1969, p. 13 (Tradução nossa).

[3]O Serviço Nacional de Informações é o serviço secreto brasileiro, vigente entre 1964-90. A partir de 1990, mudaria de sigla outras três vezes. Foi o efêmero DI (Departamento de Inteligência) entre 1990-92, SSI (Subsecretaria de Inteligência) entre 1992-99 e, desde então, Abin (Agência Brasileira de Inteligência).

[4]Cf. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005). Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 186.



MC Loma, o brega e a tal da alta cultura

Reflita sobre o significado da sigla MPB. Já vamos voltar a ela.



CEBRUUUUTHIUS!


Paloma, de 15 anos, e as irmãs Mirella e Mariely, ambas de 18, são três amigas que cresceram juntas em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. De origem humilde, elas nunca tinham comido um sanduíche (?) do McDonald’s na vida mas, pelo menos, sabiam se divertir juntas. Resolveram, só pelo sarro, formar um grupo, gravar umas músicas, jogar uns vídeos no YouTube. Improvisaram com umas lanternas mas passaram perrengue quando tiveram que chamar um produtor pra dar uma força no som e o cara queria cobrar 200 contos — que elas não tinham.

Mesmo assim, meio no quintal de casa, a faixa saiu. E quando a parada foi pra internet, BOOM. Assim, sem muito esforço, mais de 1 milhão de visualizações no YouTube.

Então. Se eu conto esta história toda aí dizendo que estas três minas formaram um trio de punk rock de garagem muito foda, de sonoridade selvagem, gravando seu primeiro disco independente na cara e na coragem, uma galera iria achar sensacional. Mas se eu contar que a Paloma se tornou a MC Loma e que Mirella e Mariely viraram as Gêmeas Lacração, muito provavelmente vai ter gente por aí fechando a cara. Vamo apostar?


Com toda certeza você deve ter ouvido, em algum momento deste Carnaval, o hit arrasa-quarteirão Envolvimento. Deve ter visto a Anitta (maior artista pop do Brasil na atualidade, é sempre bom lembrar) aderindo ao refrão da música nos stories e convidando o trio pra cantar com ela no Carnaval. Deve ter visto os elogios de gente tão diversa como Johnny Hooker, Wesley Safadão, MC Carol e até da drag sensação Shangela. Deve ter visto o Neymar dançando a música das garotas.

Deve ter visto que, além das milhões de visualizações do vídeo original, elas ganharam mais que o dobro com a versão feita pelo multiplatinado Kondzilla. Deve ter percebido que a música ultrapassou Vai Malandra nas plataformas de streaming. Não deve ter passado incólume pelos milhares de memes com expressões típicas do VERNÁCULO de Loma como “escama só de peixe” e “cebruthius”.

Deve ter percebido, também, que a música que estas três garotas ousaram fazer não é funk carioca. Ah, camarada, não mesmo. Porque o funk carioca a galera odeia, mas tolera. Não. Tem funk salpicado nesta bagaça, óbvio, mas o que elas fazem tem um nome muito claro. E que no Brasil é meio que um palavrão: BREGA.

É, esta palavra aí que virou sinônimo de feio, fora de moda, cafona. O brega, mais uma vez, desceu lá do Nordeste e veio assombrar esse mundinho do eixo Rio-São Paulo.





"Sempre toocu muito brega", conta Loma, em entrevista ao Noisey, falando sobre o que rolava nas rádios pernambucanas enquanto ela crescia (e como a menina tem 15 anos, perceba que estamos falando de coisa de 2003 pra cá). “Se tocar um funk a gente fica muito surpreso. A gente conhece até os bregas que nossas mães ouviam, tipo Reginaldo Rossi, Vício Louco, Swing do Amor”, explica. No fim, o que elas fazem pode bem ser resumido como brega-funk, uma das muitas misturas de um gênero musical que os pernambucanos conhecem bem demais.

Escuta este tecladinho eletrônico venenoso em Envolvimento e, principalmente, no novo sucesso do trio, Treme Treme. Isso é o típico brega de Pernambuco, aquele mesmo que a Lei nº 16.044/2017 garante como sendo um bem cultural do estado. “Historicamente, os ritmos que vêm da periferia são discriminados. Aconteceu com a capoeira, aconteceu com o rap, com Bezerra da Silva e está acontecendo com o funk”, afirmou ao Diário de Pernambuco o deputado Edilson Silva, que propôs a lei. Desta forma, o brega se junta a outros gêneros como o coco, afoxé, baião, caboclinhos, capoeira, forró e manguebeat e tem garantida uma cota de 60% nas grades de eventos custeados pelos estado.

MC Loma e as Gêmeas Lacração fizeram claramente uma atualização deste gênero musical. Uma espécie de Rossi The King mais colorido, mais neon, mais cheio de brilho, com uma pitadinha eletrônica e muito, mas muito mais gay. AINDA BEM.

No caso de MC Loma, basta assistir aos vídeos e ver uma entrevista sequer pra sacar o motivo do sucesso — e é justamente por causa dela que o clipe original de Envolvimento, sem o toque de Midas do Kondzilla, é ainda melhor e mais representativo. Porque é mais roots, freestyle, mas principalmente porque dá pra ver que a Loma tá se divertindo um monte. A menina é carismática, faz caras e bocas, não tem o menor medo do sotaque e parece, sinceramente, estar cagando um balde pro que pensam dela.

...tanto quanto uma loiraça poderosa de nome Pabllo Vittar, tanto quanto o BTS e suas fãs tão cagando pra esta sua babaquice de “ah, no meu tempo era melhor“. No caso da MC Loma e da Pabllo, aliás, tem um agravante aqui, que é esta coisa toda da ALTA CULTURA. O arroto do erudito, sabe?





Recentemente, tem circulado naquela outra rede social lá, aquela que você sabe qualé, um post comparando os artistas mais vendidos / ouvidos dos dias de hoje com aqueles que em tese seriam os grandes sucessos de trinta anos atrás, 1987, 1988, enfim. Se hoje temos Pabllo, MC Kevinho, Simone & Simaria e Anitta, outrora as paradas eram dominadas por Roberto Carlos, Gilberto Gil, Gal Costa, Zé Ramalho, Marisa Monte, Legião Urbana e outros exemplos mais “nobres”, mais “cultos”, mais... sei lá, alguma porra assim.

“Isso sim é que era música!”, cravaria portanto a postagem, tratando funk, sertanejo e demais sucessos de vendas dos dias de hoje como algo menor. Não vou fazer juízo de valor e tampouco criticar (agora, pelo menos) este tipo de saudosismo velho e cansado, mas sim questionar que, vejam vocês, a tal lista não tem fontes. É, isso aí. De onde veio o tal levantamento oficial, se do ECAD (que, por si só, já é um mecanismo bastante questionável, vamos falar disso em algum momento por aqui), se do Pró-Música (antiga ABPD — Associação Brasileira de Produtores de Discos), se da ABCA (Associação Brasileira de Compositores e Autores)... Enfim, você entendeu. Mais um daqueles casos de notícia sem checagem, né? Ah, 2018 vai ser foda.

Caso você tenha repassado esta lista por aí, arrotando seu gosto superior e erudito, sugiro a leitura deste texto aqui.

De qualquer maneira, dá pra dizer aqui que é cansativo ter sempre que relembrar que a sigla MPB, esta tão revista de uma aura cult, fina, elegante, quer dizer nada menos do que MÚSICA POPULAR BRASILEIRA.

“O manguebeat trouxe a cultura popular, mas também muito ligada ao folclore, ao maracatu. Aí você junta todo o valor que o Estado sempre deu à cultura popular folclórica com a chancela cosmopolita de gêneros como o rock e hip hop. É a combinação perfeita, a embalagem perfeita da world music”, afirma o professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco, Thiago Soares, também autor do livro Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco, em entrevista ao Jornal do Commercio. “Essa combinação do tradicional com a máscara cosmopolita adere ao mercado internacional, aos festivais. E o brega nunca teve isso, mas ele sempre esteve presente e não deixa de ser cultura popular porque é feita pelo povo”.


BINGO.

MC Loma é brega, é funk, é MPB e, antes de qualquer coisa, é pop — que, vale lembrar, vem de “popular”. É diversão, é entretenimento. Ou, em outras palavras: não quer ouvir, não ouve. Não tem ninguém apontando uma arma e obrigando ninguém a apertar o play não. Vale a máxima: DEIXA AS PESSOAS CURTIREM O QUE ELAS TÃO COM VONTADE.

“Esse hit é chiclete, na tua mente vai ficar”. Pois é, gente. E ficou. ;)


Consumo consciente: um guia prático para quem quer começar mas não sabe por onde

Aprenda a consumir de maneira mais consciente sem grilo nem crise


Nota da autora: este não é um daqueles artigos para te mostrar que as coisas vão de mal a pior — porque isso já sabemos. Esse é um texto-não-se-desespere, para dizer que, sim, é possível sair do olho do furacão gerado por um consumismo exacerbado. Ele também é um norte para quem quer começar a imprimir pegadas menos nocivas no planeta — e na própria vida — mas não sabe como. Portanto, não esmoreça nas primeiras linhas. Vai valer a pena. Prometo.



* * *


A agricultura animal está destruindo os recursos naturais do planeta: é uma das principais causas do uso da terra e da água, além do desmatamento e da extinção de espécies.

Os abates de animais para consumo são cada vez mais violentos.

Neste exato momento, há escravos trabalhando para fazer suas roupas.

Somos campeões mundiais no uso de agrotóxicos para matar pragas das lavouras.

Fato consumado: é um mundo cruel esse que a gente vive e, embora haja bastante gente engajada num movimento revolucionário para torná-lo um lugar mais agradável, ainda há muito trabalho a ser feito.

As cartas estão postas na mesa e trucam, constantemente, nossa participação nesse cenário caótico. A gente já sabe que colabora para o impacto negativo no planeta e também para os efeitos nocivos na nossa própria saúde. A gente já sabe que poderia fazer melhor. Mas o dia a dia corrido não permite que a gente mude assim, de uma hora para outra, os hábitos alimentares. A grana apertada e a cifra maior das peças de slow fashion desanimam e nos fazem recorrer, novamente, às grandes lojas de departamento. Queremos consumir menos, mas os estímulos publicitários dizem sempre que precisamos de mais.

Não é que falta motivação, só não sobra tempo, planejamento ou dinheiro para colocar em prática tudo que já sabemos que tem de ser feito.

Mas será mesmo que só pode ser se for assim, uma mudança radical e imediata de vida? Será que temos de fazer esse movimento 8 ou 80 ou podemos transicionar, dando passos pequenos, mas firmes?

Eu acredito, sinceramente, que sim.

Esse guia é pra quem quer começar, mas não sabe por onde.




First things first: afinal, o que é consumo consciente?


Todo e qualquer consumo causa impacto — seja positivo ou negativo — na economia, nas relações sociais, na natureza e em nós mesmos. Quando temos consciência desses impactos e fazemos escolhas mais lúcidas na hora de comprar, na hora de usar e no momento de descartar o que não serve mais, podemos minimizar os impactos negativos e maximizar os positivos. Nas entrelinhas, é uma contribuição voluntária, cotidiana e solidária para garantir a sustentabilidade da vida no planeta.

E para fazer esse movimento girar, você não precisa começar dando passos maiores que a própria perna. Pequenas mudanças também têm influência no futuro.

Vamos lá?

* * *


Entenda e se desfaça dos mitos

  • Consumo consciente é mais caro

Comecemos pelos alimentos. Uma pesquisa realizada pela Instituto Kairós concluiu que os preços dos alimentos orgânicos ou agroecológicos, na verdade, dependem mais do canal de venda do que da procedência do alimento. Assim, nos circuitos curtos de comercialização, existe uma tendência de preços mais justos, remuneradores para o agricultor e acessíveis ao consumidor.

Na prática, isso quer dizer que se você optar por comprar estes alimentos em canais alternativos — como Centrais de Abastecimento (Ceasa) e feiras orgânicas/ agroecológicas — você irá pagar até quatro vezes menos do que pagaria pelos mesmos itens em redes de supermercado. Uma iniciativa para diminuir os preços de alimentos ecológicos é o projeto Comunidades que sustentam a agricultura que transforma os consumidores em coagricultores, ao pagarem mensalmente para receber cestas de alimentos direto do produtor.

Já na moda, Giovanna Nader, consultora de fashion branding e cocriadora do Projeto Gaveta, diz que o problema não é o preço, mas o modo como nos acostumados a pagar um valor muito barato e injusto por uma peça.



“No modelo de negócio das fast fashions e magazines, alguém não está sendo devidamente pago pelo trabalho, e esse alguém é o elo mais fraco, ou seja, a mão de obra. Se considerarmos o processo de produção de uma slow fashion, a sua preocupação em pagar corretamente seus funcionários, usar o tecido orgânico ou natural que não agride tanto o meio ambiente e sua pequena escala de produção, mudaremos nossa percepção de caro para justo. E vale ressaltar que peças de segunda mão são, em geral, mais baratas. Então apoiemos os brechós, as marcas de upcycling e as que usam tecidos descartados pela indústria para produzir suas peças.”



E, para mudar ainda mais nosso olhar, sugere:

“Invista em peças de boa qualidade e durabilidade. Pense que com o valor que você paga em cinco calças jeans na fast fashion, que o tecido ficará largo e desgastado em algumas lavagens, você pode comprar uma de boa qualidade de uma marca slow fashion, direcionando seu dinheiro para marcas que questionam seus impactos no mundo”.



  • É difícil de encontrar


Essa é uma das desculpas mais constantes — e infundadas. Cresce exponencialmente o número de iniciativas, estabelecimentos, marcas e pessoas envolvidas com o consumo consciente.






No universo alimentício, há um mapeamento precioso realizado pelo IDEC, com a geolocalização de mais de 600 feiras orgânicas e agroecológicas. Na moda, iniciativas como a +Alma reúnem num só lugar marcas que querem praticar o consumo consciente e que estejam conectadas com os três pilares do projeto: vegano, atemporal e feito no Brasil.

Mas, se a consciência sucumbir ou o dinheiro realmente não for o bastante e você quiser muito dar uma passada naquela loja que não é consciente, você pode ao menos certificar-se de que ela não está envolvida com a prática de trabalho escravo.



  • Moda sustentável não é bonita


Muitas pessoas já ouviram a expressão “bambolê de garrafa pet” para sugerir que algo produzido sustentavelmente não era bonito. Para Giovanna, o argumento não tem fundamento, já que “como no mercado da moda a estética vem em primeiro lugar, no slow fashion não poderia ser diferente. Não adianta nada o produto ser sustentável se ele não for desejado, com peças com bom acabamento e design diferenciado”. Além, claro, de ser necessário destacar que conceitos como moda e beleza são subjetivos e individuais.


Planeje-se. A pressa é inimiga do consumo consciente.

Sempre que a situação aperta, temos a tendência de recorrer ao cômodo. Nas entrelinhas do consumo consciente isso quer dizer, por exemplo, que na hora que você estiver com a mão na massa fazendo aquela receita e faltar algum ingrediente, é muito provável que você recorra ao mercado da esquina e que acabe comprando um item produzido de forma convencional. E quando isso acontecer, tudo bem. Estamos num processo. Nem sempre conseguimos equilibrar todos os pratos como gostaríamos. Mas, pra evitar que situações como essa ganhem frequência, podemos nos planejar semanalmente. Ter um planner digital ou em papel pode ser uma forma bem prática de começar a se organizar por aí.


Dê preferência para os alimentos agroecológicos

Alimentos orgânicos são ótimos para nossa saúde, já que, em sua produção, não são utilizados venenos fertilizantes químicos ou sementes transgênicas. Mas os agroecológicos trazem, para além desse cuidado, um olhar para a dimensão socioeconômica, focando na produção de base familiar e na valorização de saberes e tradições do cultivo. Então, sempre que puder, opte pela agroecologia e pelo sustento de uma rede ainda mais completa de benefícios para as pessoas e para o planeta.


Troque consumo por autoestima

Quando estamos tristes, carentes, ansiosos, inseguros muitas das vezes recorremos às compras para tapar esse buraco. Acontece que é uma felicidade que não se sustenta: aquela roupa nova não vai devolver seu amor próprio, seu contentamento ou a plenitude. É uma sensação fugaz de preenchimento. Por isso, a ideia é trocar o consumo por autoestima e conectar, de novo, nossas vontades com nossas necessidades, com nossos desejos mais autênticos.

Outro método eficaz é lançar mão de três perguntas básicas antes de colocar a mão no bolso: O que vou comprar? Quando vou comprar? De quem vou comprar? Esses questionamentos simples servem como filtros para compras por impulso.


Pense no descarte.

Consumir não é apenas comprar. Depois que a utilidade de determinado produto passar, sua embalagem seguirá pelo mundo. Por isso, nada mais justo que pensar também nas consequências de seu descarte.


Dicas importantes:


  • Na hora da compra, dispense embalagens e sacolas
Sacos, papéis e caixas, na maioria das vezes, acabam nos lixos, poluindo solo, lençóis freáticos, mares e oceanos. Além disso, também exigem muita matéria-prima para sua fabricação e não têm serventia após o uso. Para substituí-los, aposte em embalagens reutilizáveis ou em ecobags para suas compras.


  • Repense e reduza


Somente reciclar o que usamos não é o suficiente para solucionar o problema, se levarmos em conta que cada brasileiro produz, por dia, cerca de 600 gramas a 1 quilo de lixo — e apenas 2% da coleta domiciliar é reciclada. Precisamos, a partir de agora, reduzir nossos resíduos. Repensar o desperdício e reutilizar ou achar novas utilidades para o que seria descartado são passos iniciais importantes para esse processo.



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É um caminho longo, mas possível. Não tem cartilha, acordos escritos em pedra ou punições severas para quem, vez que outra, sucumbe ou desvia do trajeto. Estamos juntos — e aprendendo.

Para nos inspirar, listo aqui um punhado de perfis que têm olhado com cuidado e dedicação para o consumo consciente. São eles: Roupa Livre, Luiza Voll, Fê Canna, Projeto Gaveta, Positiva, Vai lá SP — e outras regiões —, Menos 1 lixo, Fe Cortêz, The Veggie Voice, Giovanna Nader.




Breve história crítica dos feminismos no Brasil

Excluídas da história oficial, as mulheres fazem do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência. Neste ensaio, publicado na...