Fé e Afeto: especial fala sobre religião e homossexualidade



A ciência e a maioria dos países já se convenceram que não há nada de errado em ser homossexual. Agora é a vez das religiões. Este século 21 assiste a uma abertura lenta, mas contínua, dos templos. O papa Francisco já pediu o acolhimento deles nas igrejas católicas. Denominações presbiterianas e metodistas celebram casamentos gays. Igrejas anglicanas e luteranas ordenam bispos com essa orientação. No Brasil, há um grande crescimento das chamadas igrejas inclusivas, seguidoras de uma teologia que prega que a diversidade humana é uma obra divina. A primeira surgiu em 1998. Atualmente no país existem mais de 30 diferentes denominações. Mas, por aqui, os evangélicos gays estão no meio do tiroteio que os cristãos tradicionais e a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais e Transgêneros) estabeleceram nos últimos anos, quando os homossexuais passaram a exigir direitos e proteção do Estado. Mesmo criticados pelas duas trincheiras, eles mostram que é possível uma comunhão entre fé e afeto.

Culto gay dispensa o “kit crente”
Todas as religiões do mundo exaltam a sinceridade e a fraternidade, mas poucas aplicam esses valores diante de pessoas que amam outras do mesmo sexo. Primeiro, as igrejas exigem que os gays ocultem e reneguem suas atrações. Depois, se eles não conseguem, são discriminados, punidos ou expulsos das igrejas. Religiosos adoram uma revelação divina, mas não desse tipo.
Lanna Holder e Rosania Rocha sentiram a provação na carne. Quando se apaixonaram, elas viviam em casamentos heterossexuais (Rosania com um pastor) e cuidando dos filhos. “Deus é um ser de amor, não é um juiz implacável. Fiquei anos fazendo jejuns, orações e terapias de regressão à infância para reverter meu desejo e não funcionou. Só quando a Rosania estava perto de mim eu estava bem. Isso foi um sinal divino”, relata Lanna.
Depois que se separaram de seus maridos, foram chamadas de “sem-vergonha”, “safadas” e “endemoniadas” por aqueles que eram seus irmãos de fé. Lanna não era mais chamada para pregar. Ninguém mais convidava a cantora Rosania para os louvores. Mas a via-crúcis delas teve também uma redenção: em 2011 o casal fundou em São Paulo a igreja Cidade de Refúgio, uma das denominações inclusivas que mais atraem principalmente os fiéis “convidados a se retirar” de outros templos.

A teologia inclusiva se apresenta como a única forma de os gays terem uma vida religiosa plena, mas até internamente essas igrejas sofrem dilemas: são santuários de gueto ou de transição? Esses templos recebem também heterossexuais, mas ali eles são minoria. Por outro lado, as grandes religiões estão adotando estratégias para não perder esses adeptos. Sobre o assunto, o historiador Leandro Karnal, especialista em religiões, dá a pista: "O futuro destas igrejas dependerá de oscilações do mercado da fé. Mas igrejas raramente fecham". 



A longevidade do primeiro local de culto gay é prova disso. A Igreja da Comunidade Metropolitana surgiu em 1968 em Los Angeles (EUA), um ano antes do primeiro protesto LGBT do mundo, que aconteceu em Nova York, para reclamar da violência policial em bares gays. Hoje em dia, essa igreja tem 43 mil integrantes, com 222 congregações em 37 países, inclusive no Brasil.




A expansão, porém, não foi fácil. Fora as ameaças de morte e as agressões físicas aos fiéis, em todo o mundo 21 igrejas da denominação foram incendiadas ou destruídas. Não por nada no Brasil a maioria da igrejas inclusivas fica protegida em sobrelojas, galerias ou dentro de edifícios. Há sempre o temor da violência dos intolerantes.

AS RELIGIÕES E A HOMOSSEXUALIDADE


Descubra como cada uma das maiores crenças do mundo e do Brasil tratam a questão











A Igreja Cristã Contemporânea não adotou a discrição e por isso foi batizada pela imprensa carioca de "catedral gay". Inaugurada em 2015, ela ocupa toda uma esquina no bairro de Madureira, zona norte do Rio, onde antes existia um cinema e tem capacidade para 800 pessoas. É um cenário bem diferente do local anterior, um acanhado sobrado no bairro da Lapa, tradicional reduto homossexual no centro do Rio.


"Estamos abertos para as pessoas que se sentem excluídas. O próprio Jesus esteve ao lado delas, da mulher adúltera, do cego, do leproso. Ele veio ao mundo quebrar algumas leis", argumenta o pastor Fábio Inácio de Souza, líder da denominação, que é casado com outro pastor. A Contemporânea tem 3.000 seguidores em três Estados (São Paulo, Minas e Rio).


Em São Paulo, os templos inclusivos se ergueram na Santa Cecília, bairro de intensa vida gay. Foi lá que, em 1998, surgiu a primeira igreja LGBT do Brasil. A Acalanto foi fundada pelo religioso chileno Victor Orellana, criado em uma família metodista e ordenado pastor da Assembleia de Deus antes de sair do armário. Atualmente, o bairro é a "santa sede" de outras três denominações.

Uma delas é a Comunidade Nova Esperança, que foi fundada em 2004 e tem 17 unidades em todo o país. Seu primeiro local ficava em cima de um sex shop. "A gente conseguiu muitos fiéis deixando folhetos no balcão do nosso vizinho", lembra rindo o pastor Justino Oliveira da proximidade entre o sagrado e o profano por ali.

Hoje, tem até uma filial da igreja em Pisa, na Itália, onde vive um grande número de travestis brasileiros. Em São Paulo, também foi criado um ministério para atrair travestis e transexuais. A responsável para arrebanhar almas é a cabeleireira trans Jacque Chanel.

Simultaneamente ao crescimento das igrejas inclusivas, nas crenças tradicionais surgiram os programas para a chamada "cura gay". O caso do carioca Sérgio Viula é exemplar. Agora, ele se define como um "ex-ex-gay". Após uma infância com severa formação católica e experiências homossexuais na adolescência, ele virou evangélico aos 16 anos, ficou casado com uma amiga durante 14 anos, teve duas filhas, fez duas pós-graduações em teologia e atuou como pastor batista por nove anos.


Viula liderou por três anos o Moses, grupo que pretendia ajudar pessoas a deixarem práticas homossexuais. Eles distribuíam panfletos em paradas LGBT para atrair gays angustiados com sua orientação. Após esse tempo, abandonou o grupo afirmando que o trabalho não funcionava, só causava neurose nas pessoas, se assumiu gay e deixou a igreja. "Nós não fazíamos, mas tem igrejas que mantêm clínicas de recuperação, misturando viciados e homossexuais e aplicando as mesmas técnicas de abstinência e terapia ocupacional", relata Viula. "Isso só causa depressão e tentativas de suicídio", completa.


A ciência deixou de tratar a homossexualidade como doença desde a década de 1970. Antes, vários cientistas tentaram métodos como lobotomia, hipnose, extenuação física e até remédios indutores de vômito durante exibição de cenas de sexo entre homens. Em 1990, a OMS (Organização Mundial de Saúde) retirou da lista de enfermidades. Mas a partir daí muitas igrejas começam a tratar a questão como um problema da alma, com retiros, orações e súplicas.

Tradicionalmente, as igrejas ensinam que os convidados para a festa do céu são os celibatários e heterossexuais (monogâmicos, de preferência). Para os gays, está reservado um lugar no quinto dos infernos. A única solução possível é abraçar o poder místico de Deus e renunciar a todo desejo sexual (pelo menos, aquele que eles acham natural). Se a fé move montanhas, ela não muda o desejo físico de uma pessoa - só o comportamento externo.

"A moral católica é estabelecida por homens celibatários que vestem roupas coloridas e túnicas brilhantes de vermelho púrpura dos cardeais, usam anéis enormes com ouro e rubis e, sem mulheres ou filhos, estabelecem o que seria o padrão da masculinidade e das famílias ditas normais", ironiza Karnal.

O revelador é que a homossexualidade é anterior ao monoteísmo, à Bíblia e a Jesus. Os judeus, quando começaram as escrituras sagradas, criticaram as crenças politeístas estabelecidas na Babilônia e no Egito, onde foram levados como escravos. Vários deuses desses impérios eram andrógenos ou bissexuais. A homossexualidade era até ritualística em tradições da Europa e do Oriente Médio, antes que o Deus onipotente e onipresente entrasse na concorrência de corações e mentes. São justamente esses trechos da Bíblia que descrevem os ritos pagãos que os líderes fundamentalistas usam em suas cruzadas.


O instituto de pesquisa norte-americano Barna Group, fundado por cristãos, fez um levantamento com jovens de 16 a 29 anos que não frequentam igreja. A pergunta era: qual é a primeira palavra que vem à mente sobre as igrejas evangélicas? "Antigay" foi a resposta de 91% deles. A porcentagem não foi muito diferente entre jovens crentes: 80% responderam o mesmo.



No Brasil, o cenário se parece, afinal, a polêmica é decalcada do modelo norte-americano, com fundamentalistas cristãos de um lado e militantes LGBT de outro, em uma batalha moral, política e comercial. Os pastores tradicionalistas fazem uma interpretação literal da Bíblia e citam trechos do Gênesis, Levítico, Romanos e Coríntios para condenar os gays. Também classificam como "contorcionismo teológico", "promiscuidade simbólica" ou "sincretismo moral" as teorias inclusivas.

"O que muda o discurso religioso são os avanços sociais. A igreja se vê obrigada a se adaptar ou ela morre", define o reverendo Cristiano Valério, líder da filial brasileira da primeira igreja inclusiva do mundo. Os religiosos revisionistas criticam a leitura ao pé da letra do livro sagrado e afirmam que as proibições devem ser contextualizadas, afinal, algumas passagens foram escritas há mais de 3.000 anos. O Levítico, por exemplo, proíbe a homossexualidade junto com ingestão de carne de porco, ficar bêbado e ser médium.

Os inclusivos focam em trechos mais solidários da Bíblia, como o "amai-vos uns aos outros". Sua leitura se aproxima da Teologia da Libertação, que utiliza o Evangelho como instrumento de justiça social, resgate da dignidade e da vivência em comunidade. "Creio que os inclusivistas trazem uma nova visão do ensinamento bíblico e de boa fé. Ninguém pode negar que entre pessoas do mesmo sexo possa haver amor. Se há amor, aí há algo de Deus, que se autodefiniu como amor", afirma Leonardo Boff, que em sua época de frade franciscano ajudou na criação da Teologia da Libertação.

A fé é a reação do homem diante do mistério, do inexplicável no mundo. E, apesar de tão humana quanto a orientação de ser hetero, a homossexualidade não tem uma explicação única e infalível. Um conjunto de fatores genéticos, psicológicos e sociais influenciam, mas não há consenso sobre qual é o mais importante. A razão, porém, não interessa para a questão. O que importa é a pacificação e reconciliação das almas. "Eu falo como uma miss: quero a paz no mundo", se diverte Edvaldo Batista, que costuma se vestir de drag queen nas cerimônias da igreja Metropolitana para deixar seus paroquianos em estado de graça.

O grau de abertura das igrejas em relação ao público LGBT é medido pelas seguintes ações: aceitar o fiel, formar grupos de acolhida, celebrar casamentos e ordenar líderes religiosos. A Igreja Católica deu o primeiro passo, timidamente. No Brasil, há grupos como o Diversidade Católica, que aconselha o devoto e sua família em conflito. Alguns encontros são feitos dentro de igrejas, mas não é uma iniciativa oficial.

O padre e o teólogo José Trasferetti queria criar uma pastoral para o público LGBT, como há pastorais para presos, migrantes, operários e tantos outros grupos. A proposta ficou no vazio. "A evangelização, a educação na fé, o acolhimento nas igrejas deve ser obra de todos. Ninguém pode ser discriminado por razões de orientação sexual", opina o padre.

Além das igrejas que já nasceram inclusivas, denominações anglicanas e luteranas foram as que mais avançaram, ordenando pastores e bispos assumidos. A mudança gerou cisões dentro dessas igrejas, mas a divisão é a dinâmica da fé cristã desde o tempo dos 12 apóstolos.

"Eu vejo uma revolução na fé. Nós estamos entrando em uma terceira reforma do cristianismo", se entusiama José Mário Brito. Ele foi seminarista para ser padre católico, mas se afastou da religião após se assumir. Sentindo falta da mensagem divina, entrou na igreja evangélica Nova Esperança e canta na banda do templo ao lado de seu namorado.

O livro "Entre a Cruz e o Arco-Íris", da jornalista Marília de Camargo César, retrata o mais recente conflito dentro da religião, contando várias histórias tocantes de cristãos que lutaram contra sua orientação sexual, com jejuns, orações e vida missionária, mas que, ao assumir a homoafetividade, foram rejeitados e criticados por "não ter se esforçado para mudar". Marília considera que as igrejas se movem lentamente no assunto. "Um pastor amigo, um tradicional, que foi fazer um curso em São Francisco (EUA), me disse que ali as igrejas que não aceitam irmãos homossexuais não sobrevivem", conta Marília. 

Quando o mercado da fé terá esse cenário em outros países, como o Brasil? Só Deus sabe.


(Repórter do UOL Notícias. Não tem religião e não é gay, mas acha tudo isso divino e maravilhoso, em todos os sentidos.)

Pai tenta estuprar filha lésbica para fazê-la 'virar mulher'

Homem tenta estuprar a própria filha de 14 anos sob a justificativa de fazê-la 'virar mulher'. Crime teria acontecido depois que o pai descobriu o relacionamento homoafetivo da adolescente. Conselho Tutelar acompanha o caso e constatou que a garota apresenta hematomas. Jovem foi levada para fazer exames no Instituto Médico Legal e depois encaminhada para uma casa de acolhimento

Homem é suspeito de tentar ‘estupro corretivo’ em filha lésbica (Imagem: reprodução)

Um homem é suspeito de tentar estuprar a própria filha adolescente em Araguaína, norte do Tocantins. Segundo um professor da menor, que pediu para não ter o nome revelado, a garota de 14 anos contou que no dia 6 de janeiro o pai tentou estuprá-la em um matagal. O caso está sendo investigado pela polícia e corre em segredo de justiça.
O crime teria acontecido depois que o homem descobriu o relacionamento homoafetivo da filha. “Ela disse que a intenção do pai era fazê-la virar mulher. Seria uma espécie de estupro corretivo, para ela deixar de ser lésbica e aprender a gostar de homem”, explica o professor.
Ele conta que foi procurado pela adolescente, acompanhada da namorada dela, de 17 anos, após a tentativa de estupro.
“Ela contou que o pai foi buscá-la mais cedo na escola, mas no caminho de casa entrou no matagal e tentou obrigá-la a manter a relação sexual.” Porém, ela teria conseguido fugir.
Ainda segundo o professor, a garota também disse que já tinha sido agredida pelo pai por ciúmes de um menino, mas que começou a ser mais perseguida depois que ele descobriu o namoro com a adolescente. O suspeito do crime segue em liberdade.

Denúncia

O caso foi registrado pelo Conselho Tutelar de Araguaína no dia 7 de janeiro. Conforme o órgão, uma denúncia anônima informou que a adolescente era abusada pelo pai.
Durante visita à casa da vítima, a garota confirmou os abusos e também foi constatado que ela tinha hematomas, disse o órgão. Ela foi levada para fazer exames no Instituto Médico Legal e depois encaminhada para uma casa de acolhimento.

‘As crianças negras são mais punidas do que as brancas’, diz pedagoga



Existe racismo na sala de aula, e ele começa na educação infantil. 
Isso é o que afirma Ellen de Lima Souza, mestre e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e diretora do Itesa (Instituto de Tecnologia, Especialização e Aprimoramento Profissional).


Segundo a pedagoga, a escola normalmente é um ambiente inóspito para as crianças negras. Ellen estudou como elas são vistas por professoras de educação infantil e constatou duas visões distintas: o negro que gera nas docentes piedade (uma postura paternalista) ou expectativa (que deve necessariamente assumir uma postura ativista). Para mudar essa realidade, ela propõe que os professores assumam uma postura de protagonismo em sala de aula, de geradores de conhecimento, para trabalhar a autonomia e a independência nas crianças.

UOL Educação - Crianças também podem ser racistas?

Ellen de Lima Souza - Sim, podem. E são. As pessoas não esperam que elas reproduzam atitudes racistas. Depois da família, o primeiro ambiente de socialização é a escola, onde a criança é mais exposta ao racismo.

UOL - De que forma o preconceito se apresenta em sala de aula?

Souza - Quando você tem criança que se recusa a se sentar ao lado de outra negra, que diz que tem nojo de negro, que vê o negro sempre em papéis de subalternidade; quando crianças negras não são selecionadas a participar ou não têm protagonismo em atividades culturais, festas. Isso faz com que as crianças naturalizem a desigualdade e reproduzam ofensas, como quando dizem que o negro é feio, burro, cheira mal e outras coisas bastante pesadas.

UOL - Como os professores costumam tratar o tema na educação infantil?

Souza - Na minha dissertação [de mestrado], fui buscar professoras premiadas pelas práticas que já exerciam, de uma educação para a igualdade, e percebi que elas são atingidas por duas percepções básicas em relação aos negros: um sentimento forte de paternalismo, ela tem pena da criança negra, entende que ela vai necessariamente sofrer o racismo, e tem um sentimento de piedade; a outra percepção é a que gera nas professoras uma expectativa de que a criança negra tem que ser ativista. Por outro lado, existem as professoras que não têm essa consciência de uma educação para a igualdade. Essas acreditam que o Brasil vive uma democracia racial, trata o negro com indiferença e pune a criança negra com muita frequência. Aliás, desde bebês, as crianças negras são mais punidas do que as crianças brancas, recebem apelidos depreciativos e, nas situações de conflito, são as preteridas ou as culpadas.

UOL - Então como o tema deve ser tratado em sala de aula?

Souza - Na dissertação, a primeira coisa que eu proponho é que o professor crie metodologias e didáticas, ele é o protagonista em sala de aula, tem um papel social, é alguém que garante direitos, que deve ver o sujeito como autor e não reprodutor do conhecimento. Depois, eu trabalho com três conceitos básicos, baseados na mitologia iorubá: as perspectivas da ancestralidade, da corporalidade e da oralidade. Esses conceitos ajudam a criança, seja negra ou não negra, a desenvolver sua identidade, suas relações, desenvolver a emoção, física e intelectualmente, das várias formas possíveis. O professor precisa lidar com as crianças para potencializar e valorizar a condição de ser negro, já que a criança aprendeu sempre que é algo ruim. Essas perspectivas fazem com que as crianças sejam cada vez mais independentes, autônomas, aprendam a respeitar, dão a ideia de pertencimento étnico, de que a criança não está sozinha.

UOL - E o que fazer quando os pais não querem que os filhos participem dessas atividades?

Souza - Eu acho que é preciso procurar o Ministério Público, a Justiça. Ensinar história e cultura afro-brasileira é primordial. Se esse pai ou essa mãe não quer o filho estude cultura africana e afro-brasileira, ele deve pagar uma escola confessional. A escola pública é de todos, é da criança negra, da não negra, da boliviana, e se você não quer que o seu filho aprenda esses valores, tira do serviço público. A escola pública brasileira que tem que ser laica. A gente aprendeu os valores cristãos, por que as crianças não podem aprender parte da filosofia africana?

UOL - Quais são os impactos de discutir racismo na educação infantil?

Souza - A criança que tem condição de trabalhar a partir de uma educação igualitária vai além do que está posto, tem novas perspectivas de valores, uma nova cosmologia de mundo. Ela recebe essa gama de informações e fica com pensamento mais abrangente. Indiretamente, faz com que ela saiba lidar com questões de gênero, de orientação sexual, diferenças entre empobrecidos e não empobrecidos. [Discutir o racismo] É uma ampliação da visão de mundo.
Via Uol

Na perigosa rota da imigração, mulheres sofrem abusos sexuais e violência

Samar, que trabalhava no Ministério das Finanças sírio, com suas filhas em um abrigo

  • Samar, que trabalhava no Ministério das Finanças sírio, com suas filhas em um abrigo
Uma mulher síria que se juntou ao fluxo de migrantes para a Alemanha foi obrigada a pagar as dívidas do marido aos contrabandistas oferecendo sexo ao longo do caminho. Outra foi espancada por um guarda de prisão húngaro até ficar inconsciente, depois de recusar seus avanços.
Uma terceira, ex-maquiadora, vestiu-se de homem e parou de tomar banho para afastar os homens do seu grupo de refugiados. Agora, num abrigo de emergência em Berlim, ela ainda dorme de roupa e, como muitas mulheres aqui, empurra um armário para a frente da porta à noite.
"Não tem trinco nem chave, nem nada", disse Esraa al-Horani, a maquiadora, e uma das poucas mulheres aqui que não têm medo de dizer seu nome. Horani diz que tem tido sorte: "eu fui espancada e roubada".
Djamila Grossman/The New York Times
Esraa al-Horani se vestiu de homem e parou de tomar banho para afugentar os homens
A guerra e a violência em seu país de origem, contrabandistas exploradores e mares perigosos ao longo do caminho, uma recepção e um futuro incertos em um continente estrangeiro --estes são alguns dos riscos enfrentados pelas dezenas de milhares de imigrantes que continuam a chegar à Europa, vindos do Oriente Médio e outros lugares. Mas a cada passo do caminho, os perigos são ainda maiores para as mulheres.
Entrevistas com dezenas de imigrantes, assistentes sociais e psicólogos que cuidam de recém-chegados traumatizados em toda a Alemanha sugerem que a migração em massa atual tem sido acompanhada por uma onda de violência contra as mulheres. De casamentos forçados e tráfico sexual até a violência doméstica, as mulheres relatam casos de violência por parte de outros refugiados, contrabandistas, familiares do sexo masculino e até de policiais europeus. Não existem estatísticas confiáveis sobre o abuso sexual e de outros tipos contra as mulheres refugiadas.
Mais de um milhão de imigrantes entraram na Europa no ano passado, fugindo da guerra e da pobreza no Oriente Médio e outros lugares. Entre eles, os homens superam as mulheres em mais de três para um, segundo estatísticas da ONU. "Os homens dominam, numericamente e de outras formas", diz Heike Rabe, especialista em gênero para o Instituto Alemão de Direitos Humanos.
Susanne Hohne, psicoterapeuta chefe de um centro de Berlim especializado no tratamento de mulheres imigrantes traumatizadas, diz que quase todas as 44 mulheres sob seus cuidados --algumas ainda nem adultas, outras com mais de 60 anos-- foram vítimas de violência sexual. "Nós mesmos vamos ao terapeuta para supervisão duas vezes por mês para lidar com tudo o que ouvimos", disse Hohne sobre seus 18 funcionários. Juntos, eles fornecem duas sessões semanais de terapia para cada mulher e até sete horas de assistência social, incluindo visitas domiciliares, para ajudá-las com adaptação à vida na Alemanha.
Na Grécia, um dos principais pontos de entrada de imigrantes na Europa, os centros de acolhimento costumam estar superlotados e falta iluminação adequada e espaços separados para mulheres solteiras, disse William Spindler, da agência de refugiados da ONU. "Homens, mulheres e crianças dormem nas mesmas áreas", disse ele. Em toda a Europa, "casos de violência sexual e violência familiar têm sido relatados para nossa equipe de campo", acrescentou ele.
Mesmo na relativa segurança da Alemanha, o sistema de asilo tem dificuldades logísticas para acomodar perto de um milhão de imigrantes em 2015 e vem fazendo cortes no que diz respeito à segurança básica para mulheres, como quartos e banheiros com chave.
"A prioridade tem sido evitar a falta de moradia", disse Rabe, a especialista alemã em violência de gênero. "Mas um ambiente que facilite inadvertidamente a violência é um fator de risco. Não podemos permitir que o padrão caia."
Isso é mais fácil dizer do que fazer, disse Jan Schebaum, que administra duas casas para requerentes de asilo no leste de Berlim. Há dois banheiros por andar, e os quartos estão lotados.
Uma das casas que ele administra é o abrigo de emergência onde a maquiadora Horani vive. Dos 120 adultos que estão lá, a maioria é síria e afegã, e 80 são homens.
"As mulheres estão à sombra dos homens", disse Schebaum. "Suas vozes são sufocadas, e isso é um problema."
No balcão da cozinha, onde voluntários distribuem sopa quente e frutas frescas, as mulheres são muitas vezes as últimas da fila. Elas ficam muito tempo em seus quartos e raramente se inscrevem nas atividades anunciadas no quadro de avisos, como visitas a museus ou concertos. Uma mulher síria não deixou o prédio desde que está lá, há dois meses, porque seu marido, que ainda não chegou à Alemanha, proibiu-a de fazê-lo.
Djamila Grossman/The New York Times
Menina tem as mãos pintadas em um encontro de refugiadas em uma cafeteria de Berlim
Na lavanderia, histórias de abuso doméstico circulam em conversas sussurradas entre as mulheres. Um marido ciumento e violento do quarto andar tem batido na mulher. Outra mulher tem apanhado do marido porque eles não podem ter filhos. Alguns meses atrás, dois homens afegãos assediaram uma menina afegã com comentários obscenos e a empurraram da bicicleta antes que outros interviessem, disse um voluntário do abrigo. Mas poucos incidentes de violência são denunciados.
Agora há uma noite de tricô e uma aula de aeróbica só para mulheres. Nas manhãs de quarta-feira, pequenos grupos de mulheres vão para a casa de uma voluntária para tomar banho, pintar as unhas e cuidar da aparência.
Uma tarde por semana, as assistentes sociais levam as mulheres imigrantes para uma cafeteria do outro lado da rua para a "hora do café". As paredes estão cobertas de pichações e o lugar cheira a fumaça. Mas não importa. Quando Horani chegou com uma grande variedade de música árabe em seu smartphone, o interior desarrumado do café foi transformado num mar de lenços de cabeça balançando com a dança.
Enquanto algumas mulheres pintavam as mãos com henna e outras compartilhavam suas frustrações sobre o tempo que leva para obter o status de refugiado, Samar, 25, uma ex-funcionária do Ministério das Finanças da Síria, se abriu sobre como é estressante ser uma mulher em fuga. Depois de ter a casa bombardeada em Darayya, um subúrbio de Damasco que se tornou conhecido pelos protestos contra o governo no início da guerra civil, Samar passou 14 meses viajando sozinha com suas três filhas, de dois, oito e 13 anos.
Djamila Grossman/The New York Times
Samar (centro), que foi roubada e abusada na Turquia depois de deixar a Síria, dança com outras mulheres refugiadas em uma cafeteria perto do abrigo onde moram
"Eu não as perdia de vista por um minuto", disse ela em árabe, falando através de um intérprete. Ela e outras mães solteiras dormiam em turnos ao longo do caminho, olhando as filhas umas das outras.
Mas, em Izmir, na Turquia, quando estava prestes a pegar um barco para a Grécia, Samar foi assaltada e ficou sem dinheiro para pagar o contrabandista. Um homem atarracado que se chamava Omar se ofereceu para levá-la de graça, mas só se ela fizesse sexo com ele. Samar já o tinha ouvido antes, à noite, no albergue onde ela e outras mulheres refugiadas estavam hospedadas, "indo de um quarto para outro".
"Todo mundo sabe que existem duas maneiras de pagar os contrabandistas", disse ela. "Com dinheiro ou com o corpo."
Mas ela se recusou, e Omar ficou irritado. Naquela noite, ele invadiu o quarto de Samar, fez ameaças a ela e às filhas antes que o grito dela o afugentasse. Samar permaneceu na Turquia por quase um ano para trabalhar e poupar os 4.000 euros necessários para o restante da viagem.
Sentada com sua filha mais nova aninhada no colo, Samar concluiu: "quase todos os homens do mundo são ruins".
Do outro lado da cidade, no oeste de Berlim, Hohne foi compreensiva, mas mostrou uma visão com mais nuances. Não há soluções fáceis, disse ela. Os abrigos só para mulheres não são uma opção, porque a maioria das famílias quer ficar unida. Algumas mulheres dependem dos homens para proteção. E, acrescentou, "não devemos esquecer que muitos dos homens também estão traumatizados."
"Não existe o preto e o branco, o bem e o mal", disse ela. "Se quisermos ajudar as mulheres, também precisamos ajudar os homens.
Fonte -  Uol

Crianças Casadas - A realidade de 554 mil garotas de 10 a 17 anos que são esposas e o Brasil desconhece

Os bastidores da reportagem que foi buscar as crianças casadas no Brasil


Conto aqui a inspiração que me levou à reportagem “Noivas Meninas”, da edição de janeiro da revista CLAUDIA: o Brasil desconhece a realidade de 554 mil garotas de 10 a 17 anos que são esposas, cuidam de filhos, marido, casa e estão perdendo direitos e oportunidades


Foto: Victor Moriyama/Revista CLAUDIA 
Ivonete da Silva, 14 anos, é mãe de Rayslani, de 1 ano. Thainá Darri, 17, casada desde os 15, está grávida e desistiu de estudar.

Nunca tinha ouvido falar em casamento infantil no Brasil até 2013. Fiquei estarrecida. Como podia ser verdade? Supunha que fosse uma realidade da África Subsaariana ou do Sul da Ásia, onde fome ou tradições e ritos se impõem. Quem deu a informação foi a assistente social Neilza Buarque Costa, da ong Visão Mundial, ao debater o documentário Girl Rising (Richard Robbins), segundo o qual 66 milhões de meninas estão fora da escola, em todo o Planeta, e uma das razões é o matrimônio precoce. Mas eu imaginei: se tem aqui, deve ser uma situação isolada num rincão profundo.
Por dois anos não me saiu da cabeça um caso da Paraíba, que Neilza contou à plateia: um homem queixou-se à sogra, porque sua mulher, de 12 anos, nunca estava em casa quando ele chegava. Passava as tardes brincando de boneca com a filha da vizinha, deixava a roupa sem lavar, a cozinha suja… Comecei a pesquisar. Tive notícias de tantas adolescentes se submetendo a um marido violento, com dois ou três filhos nos braços. E de homens – alguns com mais de 40 anos – que adoram casar com menininhas firmes de carne e a quem eles podem moldar o caráter.
O tema passou a me doer. A reportagem “Noivas Meninas” está nas bancas, na edição de janeiro, de CLAUDIA – um fôlego que juntou o fotógrafo Victor Moriyama, a estagiária Gabriela Abreu e eu. A primeira descoberta: não se trata apenas de casos em um grotão perdido. O casamento infantil ocorre na maior economia brasileira – a cidade de São Paulo -, na região metropolitana de Curitiba, no Tocantins, em Minas, nas capitais do Pará e Maranhão… Difícil descobrir onde não tem. Hoje, 554 mil garotas de 10 a 17 anos são casadas, calcula um estudo do Instituto Promundo, com base no IBGE, publicado em setembro passado. Como a lei considera crime o sexo com menores de 14, mesmo que consensual, a maioria das uniões é informal. Ainda assim, em 2013, Campo Grande casou no cartório o maior número de brasileirinhas. Partimos atrás de uma amostra nacional. O texto começa assim:
“Catingueiras magricelas e peladas, sol forte, uma cabrita, um bode e algumas galinhas são quase tudo que Ivonete Santos da Silva, 14 anos, vê ao longo do dia e por semanas a fio. Mãe de Rayslani, 1 ano, ela dorme cedo. A casa de taipa onde vive, no sítio Lagoa Nova, em Inhapi (AL), a 289 quilômetros da capital, Maceió, não tem lâmpadas nem TV. Ivonete juntou-se aos 12 anos com Sislânio Silvério, 21, seu primo. Deixou a escola sem aprender a unir as letras: “Era aperreio demais, tudo acontecia na hora do almoço, tinha que fazer comida, me arrumar, sair para estudar”. Não se arrepende. “Só quando estou bem estressada, limpando a casa, e a menina acorda chorando, penso: ‘Meu Deus, o que eu fiz?’ ” Ainda assim, considera que está melhor do que no tempo em que vivia na casa materna. “Um dia, saí calada, o povo estava todo lá pra dentro. Fui embora com Sislânio.” Ele trabalha na roça. Quando tem roça. Há cinco anos, o sertão enfrenta uma seca bruta; a terra está tão dura que é impossível plantar. Na única panela, no fogãozinho de barro, há feijão. Ivonete não faz planos, não pronuncia desejos – pelo menos a estranhos que invadem sua rotina -, mas responde como se sente: “Não sei direito. Sou um pouco mulher, pequena demais, meio criança também”. Quando fecha os olhos, do que se lembra? “De mim desenhando pé de maçã, árvore de morango.” Mesmo que morangos amadureçam a não mais que 30 centímetros do chão, era esse seu deleite na sala de aula. Queria ser professora, acha que não dá mais tempo. “Espero que minha filha case bem tarde, só com 17 anos, e não engane a escola para aprender tudo bem direitinho”, diz.
Depois de Inhapi, percorremos Canapi (AL), Colombo (PR), e uma das maiores favelas do país, Heliópolis – não haveria nenhuma dificuldade de encontrar meninas casadas nessa comunidade paulistana. Enquanto Victor fotografava, ali, Thainá Darri, 17 anos, casada desde os 15, dezenas de meninas iam se juntando para saber o que fazíamos. Dei a pauta e elas quiseram saber porque tanta curiosidade sobre algo tão comum. Várias, entre 14 e 16, carregavam um filho.
Thainá é um caso diferente, tem uma consciência política clara, é feminista, está no conselho do meio ambiente da região e é a única das entrevistadas que concluiu o segundo grau. Acabava de receber o resultado do laboratório – positivo para gravidez – e decidiu adiar os planos de fazer uma faculdade. No seu discurso, me chamou a atenção a explicação para seu casamento aos 15: queria privacidade com o namorado e, de certa forma, proteção. “Aqui, as meninas se jogam no funk, bebem e nem sabe quem é o pai do filho delas. O casamento me poupou disso.”


Ana Clara e o marido Jaílson (Foto: Victor Moriyama/Revista CLÁUDIA)
Mãe de Michel Júnior, casada em Canapi desde os 14, Ana Clara dos Santos, 16, fugiu de casa para ficar com seu amado, Jaílson de Oliveira, na época com 16. Duro para ambos é deixar o bebê aos cuidados da mãe de Ana, porque eles não têm condição financeira de criá-lo. A alagoana Jamille Henrique ganhou, aos 14, uma aliança e se viu livre da lida pesada com seus oito irmãos, além do jugo do pai alcoólatra. Embora tenha em Marcelo um parceiro divertido, e com quem gosta “de brincar e de fazer sexo”, seu semblante é triste e sua concepção sobre a vida de mulher, medonha: “Todas apanham. Não acho bom, mas é o que acontece”.


Monique e sua Maria Clara (Foto: Victor Moriyama/Revista CLÁUDIA)
Monique Barbosa, aos 15, parece uma madonna, de Michelangelo, com sua Maria Clara sempre a tiracolo. Essa Pietá de Colombo (PR), queria ser policial, mas desistiu, está fora da escola, cansada dos afazeres domésticos e do ciúme do marido. Na mesma cidade, Joyce Pinheiro, mãe de gêmeas aos 15, teme as estrias e que o marido a troque por uma menina mais magrinha. Ela conta: “Das 20 colegas que estudavam comigo, 16 estão casadas ou são mães solteiras”. Ouvimos vários especialistas para entender o fenômeno.


Joyce, Kauany Vitória e Karyne Manuele (Foto: Victor Moriyama/Revista CLÁUDIA)
Saio das reportagens carregando as personagens em mim. Demoro a tirá-las do pensamento. Ivonete, a sertaneja do sítio sem luz, me abraçou longamente quando nos despedimos. Prometi enviar uma revista para alguém ler para ela. E também uma fotografia ampliada. Essa menina-mãe nunca teve uma foto sua. De todas as personagens, foi a que mais interagiu com a câmera. Tem uma força no olhar inexplicável. Encarava as lentes de Victor com muita naturalidade e firmeza. Fico imaginando como Ivonete fará para desamarrar o nó, desbancar seu destino e vencer as agruras todas que enfrenta desde o nascimento. Algo me diz que ela vai conseguir.

Bebé indígena é morto a sangue-frio em SC e o Silêncio da mídia

Por que o assassinato de um bebê indígena registrado em vídeo passou despercebido pelos meios de comunicação brasileiros? Criança foi atacada e teve a garganta cortada enquanto mamava no colo da mãe. 

Security camera footage shows suspect approaching mother and child. Photo: ScreenShot
Câmara de segurança (CCTV) mostra o suspeito a aproximar-se da mãe que amamentava a criança. Captura de tela
Na tarde de 30 de Dezembro, uma mulher da tribo Caingangue amamentava o seu filho de dois anos, sentada num passeio junto à central de autocarros da cidade de Imbituba, no Estado de Santa Catarina, Brasil. Eles tinham dormido naquele local juntamente com um grupo de indígenas após terem efetuado uma viagem de autocarro que durou oito horas, desde a cidade de Chapecó para Imbituba onde vendem artesanato.
No estado de Santa Catarina, sul do Brasil, o fim do ano é a época em que as suas praias famosas ficam cheias de turistas vindos de outras partes do país e do estrangeiro como Uruguai e Argentina. O povo indígena vê neste influxo de visitantes uma oportunidade para vender artesanato e gerar alguma receita. As estações rodoviárias ficam cheias de artesãos, que passam ali a noite para estarem mais perto dos clientes que chegam de autocarro.
A jovem mãe segurava o seu bebé encostada ao muro quando um desconhecido se aproximou deles. Imagens CCTV mostram o homem a aproximar-se, primeiro tocou na face do menino Vítor Pinto e depois com uma pequena lâmina desferiu um golpe cortando a garganta do Vítor fugindo logo de seguida. A mãe, desesperada, gritou por ajuda mas o pequeno Vítor acabaria por morrer. Tinha apenas dois anos.
Este crime horrendo de uma criança, assassinada a sangue-frio, nos braços da mãe e em plena luz do dia não fez as manchetes da imprensa nacional. Apenas alguns jornais locais deram a notícia, de forma discreta. A jornalista Eliane Brum, opina sobre o caso no jornal espanhol El País:
Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média, assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação rodoviária, como nas vítimas de terrorismo em Paris. Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena. Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.
Quais as vidas que têm mais importância?
Illustration of a fight between indigenous people and militias during Brazil's Colonial era, by Johann Moritz Rugendas | Image: Public domain
ilustração de luta entre povos indígenas e milícias da época colonia brasileira. Autor: Johann Moritz Rugendas. Imagem: Domínio público
Desde que a América Latina se tornou um “negócio europeu” – como lhe chamava o jornalista Eduardo Galeano – a vida indígena sempre foi a mais barata do continente. Não é novidade, “o racismo sobre o povo indígena é histórico” sublinha o professor Waldir Rampinelli numa entrevista à Rádio Campeche logo após a morte do pequeno Vítor.
Assim que a gente se tornou independente, para os indígenas nada mudou […] Esse preconceito contra os indígenas chega até os dias de hoje. Tanto é que matar um indígena na rodoviária de Imbituba, aparentemente, é um crime muito menor do que matar uma criança branca numa rodoviária de Florianópolis.
Elaine Tavares, uma jornalista a viver em Santa Catarina, refere que quando os exploradores Espanhóis e Portugueses chegaram à América Latina, os povos indígenas foram denominados de “não-humanos, cidadãos de segunda classe, sem almas, inúteis”
Ao longo de todos esses séculos foi sendo construída uma imagem negativa do indígena, justamente para que pudesse ser justificada a invasão e o roubo de suas terras e riquezas. Os índios são vistos como um atrapalho, uma lembrança desconfortável do massacre. Por isso que o melhor acaba sendo confiná-los em alguma “reserva” longe dos olhos das gentes. Mas, se eles decidem sair e dividir a vida no mundo branco, aí a coisa fica feia.
No Estado de Mato Grosso do Sul, cerca de 300 índios foram mortos em conflitos fundiários, no passado recente. Muitos líderes indígenas tentam chamar a atenção para o que eles chamam de um “genocídio”, que está a acontecer no país, por milícias organizadas. Muito pouco tem sido feito sobre esta matéria. Os suicídios também têm sido uma constante, sobretudo na etnia Guarani-Kaiowá. De acordo com o New York Times, os suicídios entre a tribo é 12 vezes maior do que a média nacional.

Direito à terra

Indigenous people protest outside Brazil's Supreme Court | Image: Wilson Dias/AgênciaBrasil/CC 3.0
Índios protestam em frente ao Tribunal Supremo. Imagem: Wilson Dias/AgênciaBrasil/CC 3.0
Em todo o país, o povo indígena luta para obter a devida demarcação e reconhecimento das suas terras de acordo com as diferenças regionais de Estado para Estado. Muitos vivem nas ruas ou acampam ao lado das auto estradas construídas sobre as suas terras. O Governo de Dilma Roussef tem o pior registo de demarcação de terras dos últimos 30 anos.
O Congresso está na iminência de aprovar uma emenda constitucional que altera a forma como a demarcação de terras é efectuada. Se aprovada, a PEC 215 vai transferir a decisão final da demarcação e propriedade de terra indígena do poder executivo para o legislativo. A medida vai colocar a palavra final nas mãos do Congresso e no lóbi dos grandes produtores agrícolas – ruralistas.
Entretanto, as disputas de terra continuam a ser fomentadas. Em Novembro, uma reserva em Florianópolis foi invadida pelo antigo proprietário que não aceitou o montante pago para devolver as terras para os povos indígenas. Um mês antes da invasão, um juiz decidiu contra o homem, com base em que ele sabia que se tratavam de terras indígenas, quando ele comprou a propriedade. A chefe da tribo, Kerexu Yxapyry – também conhecida por Eunice Antunes – já havia denunciado as ameaças de morte e perseguição de que tem sido alvo (antes da invasão) mas nenhuma ação foi tomada.

O assassino de Vitor

Dois dias depois do assassinato, o suspeito de 23 anos entregou-se à polícia e confessou o crime. Decidiu entregar-se por temer pela própria vida mas até ao momento não apresentou o motivo pelo crime. Relatos da polícia dão conta que o autor do crime possa sofrer de perturbações psicológicas.
Mas se não há muito para dizer sobre o assassino, a morte de Vítor diz muito sobre como o Brasil cuida o seu povo nativo. Eliane Brum comenta que:
Quem continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os negros, os pobres e os índios. […] Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.

Breve história crítica dos feminismos no Brasil

Excluídas da história oficial, as mulheres fazem do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência. Neste ensaio, publicado na...