Entenda a ofensiva contra educação de gênero nas escolas

Sete projetos de lei tramitam no Congresso contra “doutrinação” e “ideologia de gênero”, apesar de o direito a estudar o tema ser garantido na Constituição


– No meu tempo de escola, tinha uma coisa meio besta dos meninos ficarempassando a mão na bunda das meninas, assim, do nada. Vocês fazem isso?
– Ah, às vezes…
– E vocês não acham que isso é errado?
– A princípio está errado, mas elas dão liberdade… elas até dão risada.
– Mas e o que é dar liberdade?
– Ah, é que elas não se invocam… elas gostam.
(trecho de conversa com dois adolescentes)
Lousa na Escola CEM 09 de Ceilândia. Foto: Paula Fróes/AzMina
Oano é 2016, e o cenário é uma escola da rede pública de Porto Alegre – mas poderia muito bem ser em qualquer lugar do Brasil. Nos intervalos das aulas, vê-se adolescentes “sarrando” – gíria importada do funk, o mesmo que “se esfregando” – nem sempre com o consentimento de ambas as partes. Pelos corredores, professores fazem de conta que não veem; se alguém protesta contra os assédios, a primeira preocupação é saber se a reclamação os fará perder tempo. O conteúdo é muito, os períodos de aula são curtos, e o salário, menor ainda.
Na escola brasileira, meninas, meninos e professores – e gestores e coordenadores pedagógicos – são parte de um microcosmo que reproduz desigualdades e violências de gênero encontradas na sociedade. E, embora o direito à educação para a igualdade de gênero esteja previsto na Constituição, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e nas diretrizes curriculares nacionais, as escolas vêm falhando sistematicamente, porque deixam de discutir esses assuntos. Dentre 25 unidades federativas que sancionaram planos estaduais de educação até o fim do ano passado, 12 (11 estados e o Distrito Federal) excluíram menções à palavra “gênero” dos documentos, de acordo com um levantamento feito pela plataforma De Olho nos Planos.
Os planos de educação têm força de lei e estabelecem metas para que a educação do município, do estado ou do país avance em um período de dez anos. Por serem planos de longo prazo, eles são instrumentos fundamentais para enfrentar o problema da descontinuidade das políticas públicas educacionais no Brasil.
“Fazer referência à gênero e diversidade nesses documentos é, primeiramente, reconhecer e diagnosticar o problema da desigualdade em nossa sociedade”, diz Claudia Bandeira, assessora da Unidade Diversidade, Raça e Participação da ONG Ação Educativa, que coordena a plataforma De Olho nos Planos.
Escola CEM 09 de Ceilândia. Foto: Paula Fróes/AzMina

Conservadores apostam na desinformação

Como se não bastasse, atualmente, sete projetos de lei que estão no Congresso Nacional ameaçam interromper as poucas iniciativas de discussão desse assunto. As propostas são recheadas de termos como “doutrinação” e “ideologia de gênero”. Seis desses projetos foram apensados entre si e um ainda tramita sozinho.
Outra estratégia dos setores mais conservadores tem sido a de constranger os docentes que abordam gênero e diversidade na sala de aula. No ano passado, um professor de biologia do Distrito Federal recebeu uma notificação extrajudicial de uma parlamentar da bancada distrital evangélica depois de passar um trabalho para discutir a melhor inserção de alunos trans na comunidade escolar.
A ação da deputada Sandra Faraj (do Solidariedade) pegou o professor Deneir Meirelles de surpresa, mas, segundo ele, as consequências acabaram sendo positivas. “Houve uma resposta de apoio a mim muito forte na comunidade, o colégio realizou uma audiência pública. Os objetivos pedagógicos acabaram extrapolando a sala de aula”, comemora.
Ações como a da deputada, contudo, acabam desencorajando professores e gestores. Embora a Secretaria de Educação tenha respaldado Deneir – e feito questão de destacar que a abordagem sobre gênero na escola não é ilegal – muitas unidades passaram a evitar certos assuntos.

“É muito ruim para a educação que os professores sejam de tal forma intimidados a ponto de optarem por não realizar qualquer abordagem crítica, como mecanismo de preservação de suas atividades docentes”, lamenta a presidente da ONG Themis – Gênero, Justiça e Cidadania, Fabiane Simioni.
Da esquerda para a direita: Thalita Jennie, Maria Eduarda e Brenda. Foto: Paula Fróes/AzMina

Projetos têm tramitação acelerada

O avanço da onda conservadora no Congresso e a disseminação de termos como “ideologia de gênero” são alimentados pelo oportunismo político.“As pessoas acham que temos escolas verdadeiramente empenhadas em desconstruir estereótipos, mas isso não poderia estar mais distante da realidade”, diz Luis Felipe Miguel,  professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). “O que havia, entretanto, antes do afastamento de Dilma Rousseff, era uma política geral de que determinadas hierarquias podiam ser questionadas – e a escola era o espaço para a reflexão sobre isso”, pondera.
A mais ambiciosa das propostas contra o direito à educação de gênero é a do programa Escola Sem Partido, o PL 867/2015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB/DF). O texto prevê, entre outras coisas, que “a educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’.”
Em outubro, a Câmara instalou uma comissão especial para análise do PL da Escola Sem Partido (e dos outros seis que foram apensados à proposta), o que deve acelerar a tramitação. Isso alarmou ainda mais os setores preocupados com os direitos humanos e a redução das desigualdades de gênero. Uma comissão especial abrevia o caminho tradicional que as propostas precisam fazer no legislativo, eliminando a necessidade de serem discutidas nas comissões ordinárias da Casa.

A reportagem tentou contatar três dos parlamentares com projetos de lei sobre essa temática. Por três semanas, fizemos ligações ao assessor de Izalci, mas ele informou que o deputado estava inacessível. O assessor de Erivelton Santana (PEN/BA), por sua vez, parou de atender as ligações quando explicamos a pauta.
O único a responder foi Rogério Marinho (PSDB-RN), autor do PL 1411/2015. A proposta, que tramita isoladamente, tipifica o crime de “assédio ideológico” contra os alunos, que seriam obrigados a tomar posições políticas dentro da escola. “Na realidade, o assédio ideológico é quando o doutrinador fere normas nacionais e internacionais. A lei é para garantir e proteger a pluralidade de pensamento em sala de aula, em todos os sentidos, teórica, metodológica e científica”, disse Marinho.
Além da ofensiva nacional, há uma série de outras iniciativas contra a educação de gênero em âmbito estadual e local. Em Alagoas, por exemplo, a iniciativa batizada como “Escola Livre” foi sancionada em maio do ano passado. Já há duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) para impugnar a lei.
“Penso que essas normas devem ter vida curta, pois estou absolutamente convencida de que o STF vai declarar a sua inconstitucionalidade. No entanto, durante a sua vigência, produzem danos enormes”, afirma Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão. “A escola é um espaço estratégico, seja para criar uma educação de formato colonizador, como aconteceu até a Constituição de 1988, seja para promover uma educação de caráter emancipatório, que é o projeto constitucional”, completa.
Não bastasse irem de encontro à lei máxima brasileira, esses projetos – e mesmo os planos de educação que não contemplam a igualdade de gênero – estão na contramão de uma série de tratados dos quais o Brasil é signatário e das recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento das populações.

Religião na escola

Também é preocupante a volta do ensino religioso em alguns cantos do país sem a vigência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC está prevista no Plano Nacional de Educação e deve estabelecer exatamente os conteúdos essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros terão o direito de ter acesso durante a educação básica. Atualmente, enquanto a BNCC é discutida pela sociedade em âmbito nacional, o tema é provisoriamente regulado de forma regional.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, uma reestruturação curricular estabeleceu a obrigatoriedade do ensino religioso não proselitista nas séries iniciais, embora essa previsão já existisse desde 1989, conforme informou a Secretaria de Educação do estado. Qualquer professor habilitado para dar aula às crianças, ou seja, com o nível médio, pode ministrar a disciplina.
“O problema é que, quando não há formação e orientação adequadas, o professor fecha a porta da sala de aula e, se quiser, reza o pai-nosso com os alunos”, comenta Paulo Henrique Carmona, que dá aula de educação física na rede pública do Distrito Federal. Em 2015, grupos religiosos distribuíam “biblinhas” em uma das escolas que Carmona trabalhava – e em que provavelmente nem todas as famílias dos alunos eram cristãs. A prática só foi interrompida quando ele e outros colegas questionaram a direção.
“Este é um território não desbravado, e nós o vemos com preocupação porque, dependendo do interesse de quem está na ponta, vira catequese“, reconhece Gilberto Garcia, presidente da comissão que discute o assunto no Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão responsável pela elaboração da BNCC.

Para Fernando Seffner, coordenador do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a “gritaria” dos grupos conservadores é um indicativo da força da escola. “A influência do ambiente escolar sobre as novas gerações cresceu enormemente nos últimos anos, roubando um papel que antes era da família e da igreja”, contextualiza. “Eu sou um otimista e acho que a resistência está nascendo justamente dentro das escolas, como pudemos ver durante as ocupações estudantis.”

Lei expõe crianças a abuso

A lei de alienação parental, que deputado pretende tornar mais severa, abre brechas para que vítimas de abuso sexual sejam obrigadas a viver com pais suspeitos da agressão



Igor* tinha 4 anos quando fez a primeira queixa. Foi em 2013, num domingo à noite, depois de um fim de semana na casa do pai. Ele tinha tomado banho sozinho, tinha comido pizza e, antes de dormir, reclamou para a mãe que o “b­­umbum estava doendo muito”. Iolanda*, que estava separada havia dois anos – período em que mantivera uma relação amistosa com o ex-marido –, examinou o filho e constatou que ele estava realmente machucado.
Tentou perguntar alguma coisa, o quê ou quem tinha causado aquilo, mas viu que o menino se afligia demais e, com medo de piorar a situação, apenas colocou-o para dormir. Passou a noite em claro, encarando o teto do apartamento da zona sul do Rio, à procura de explicações que não fossem terríveis demais. Quando, na manhã seguinte, uma pediatra examinou Igor e disse que havia lesões indicativas de abuso, Iolanda, uma morena de expressivos olhos castanhos, à época com 26 anos, teve de sair da sala. “Não queria desabar na frente do meu filho”, disse.
No mesmo dia, o Instituto Médico-Legal (IML) do Rio de Janeiro confirmou os indícios de abuso. A polícia passou a investigar o caso, e a Justiça limitou o contato de Igor com a família paterna a visitas assistidas. Nesse meio-tempo, Iolanda confrontou o ex-marido e ele reagiu com nervosismo, disse que não havia abuso nenhum, que devia ser uma alergia. “Nessa hora percebi que ele sabia. Mas achava que estava protegendo o filho do primeiro casamento, que passava o fim de semana com eles”, contou Iolanda.
Algumas semanas depois, contudo, o menino falou sobre a causa dos machucados que levariam um mês para cicatrizar: “Você não está entendendo?”, disse à mãe. “Foi o papai que fez isso comigo.” Iolanda imediatamente entrou com um pedido de afastamento, novamente acatado pela Justiça fluminense.
Então as coisas começaram a mudar. Enquanto era investigado por estupro de vulnerável, o pai de Igor abriu um processo na vara da família. Alegava que a mãe estava promovendo uma campanha de difamação para afastá-lo da criança, e pedia a guarda do menino.
Enfurecida, Iolanda procurou aconselhamento de advogados e de conhecidos que trabalhassem no meio jurídico. De todos escutou o mesmo alerta: para tomar cuidado, que se fosse adiante com as acusações correria o risco de perder a guarda do filho. Ela respondia que não era possível, que havia provas concretas, que a Justiça não deixaria uma criança à mercê de um abusador, que estavam todos malucos. Não estavam.
O processo movido pelo pai suspeito de abuso lançava mão da Lei 12.318, de agosto de 2010. Conhecida como lei de alienação parental, ela foi criada com o objetivo de impedir que, em casos de divórcio, um cônjuge sabote a relação do outro com os filhos. Dificultar o contato da criança com o genitor, mudar de endereço sem justificativa, ou apresentar falsa denúncia são exemplos de alienação parental previstos na lei.
Acontece que provas nos casos de abuso sexual são extremamente difíceis de obter. O crime quase sempre ocorre entre quatro paredes, muitas vezes não há ferimentos, a janela para colher material genético do agressor no corpo da vítima é de 24 horas, os depoimentos das crianças são difíceis de obter e frequentemente carecem de objetividade. Fica fácil, para a defesa, argumentar que as acusações são falsas, e a ausência de provas de abuso se torna prova de alienação parental. Como uma das punições previstas é a inversão de guarda, as crianças, supostamente vítimas, muitas vezes acabam entregues aos suspeitos.
As mães, por sua vez, passam a ter o acesso aos filhos limitado, quando não totalmente proibido – penalidades que podem se tornar mais rígidas, uma vez que, desde fevereiro de 2016, tramita no Congresso o Projeto de Lei 4.488. De autoria do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), propõe que a alienação parental passe a ser considerada um crime. Caso seja aprovado, mães que denunciarem maridos ou ex-maridos sem conseguir provar poderão ser condenadas a penas de prisão, que devem variar de três meses a três anos.

Relatos e dados

Numa pesquisa feita nos sites dos 27 tribunais de justiça brasileiros, cruzando-se os termos “alienação parental” e “abuso sexual”, foram encontradas 249 ocorrências – número que não abarca os processos de primeira instância, necessariamente mais numerosos. Não é possível afirmar em quais dessas ocorrências a lei está sendo usada de forma maliciosa, mas os relatos se proliferam.
No Rio Grande do Sul, uma mãe diz ter descoberto que a dificuldade de fala do filho de 4 anos, atribuída a um possível autismo, se devia ao trauma causado por abusos recorrentes. Em São Paulo, uma mãe gravou 11 minutos de agonia dos filhos que choravam e gritavam as atrocidades cometidas pelo pai, enquanto um oficial de justiça cumpria o mandado de busca e apreensão, favorável ao suspeito. No Mato Grosso, uma mãe contou que o pai suspeito de ter cometido abuso sexual pediu a custódia dos dois filhos e colocou-os num abrigo. Em todos esses casos, relatados em entrevistas ao repórter, a guarda foi concedida aos pais, sempre com base na premissa de que as denúncias não passavam de atos de difamação engendrados por mães vingativas. 

A síndrome por trás da lei

A Lei 12.318 baseia-se no conceito de síndrome de alienação parental (SAP), criado pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner, em meados da década de 1980. Segundo Gardner, a síndrome se instalaria em crianças, geralmente durante ou após processos de separação conflituosa, provocada por campanhas de difamação promovidas por um dos cônjuges, normalmente a mãe, que se tornaria a “alienadora”.
Entre os vários expedientes utilizados para prejudicar a imagem do ex-companheiro, estariam as falsas acusações de abuso sexual e a implantação de memórias nos filhos por meio de lavagens cerebrais. Como consequência, eles desenvolveriam ódio crescente pelo genitor “alienado” até que finalmente se juntariam à campanha de difamação. A SAP causaria distúrbios mentais de ordem variada nas crianças, que nunca se recuperariam do trauma.
Além de elaborar a teoria da síndrome, o psiquiatra norte-americano ofereceu um conjunto de ferramentas para combatê-la: a “terapia da ameaça”. O método propõe tratamentos psicoterápicos impostos pela Justiça para o alienador, suspensão do sigilo entre paciente e psicólogo e livre acesso do juiz aos dados do tratamento. Prevê punições como inversão de guarda, privação total de contato entre o genitor “alienador” e a criança e encarceramento.
O conceito da SAP logo se espalhou pelos tribunais, principalmente da Europa e das Américas. O médico norte-americano fez carreira como psiquiatra forense, tendo atuado em mais de 400 casos de divórcio litigioso. O que leva à primeira crítica à sua teoria: ele teria criado a SAP para figurar como arma de defesa nos processos em que trabalhava.
“Este médico fez sua carreira profissional defendendo indivíduos acusados de abuso sexual de crianças e criou esta teoria da síndrome da alienação parental, que nunca foi reconhecida pela comunidade acadêmica e pela ciência, para defender seus clientes”, afirmou à Pública a ministra do Tribunal Constitucional de Portugal (equivalente ao nosso Supremo) Maria Clara Sottomayor, que esteve no Brasil a convite do Judiciário catarinense para falar sobre o tema.
De fato, o rigor de suas pesquisas foi duramente questionado por instituições e profissionais de saúde mental. A Associação Americana de Psicologia, por exemplo, afirmou que “não há evidência na literatura psicológica de uma síndrome de alienação parental diagnosticável”. A Associação Espanhola de Neuropsiquiatria foi além. “Acreditamos que o sucesso do termo SAP no campo judicial se deve ao fato de possibilitar uma resposta simples (e simplista) a um grave problema que preocupa e satura os juizados de família, fornecendo argumentos pseudopsicológicos e pseudocientíficos”. As declarações estão citadas no estudo “Síndrome da alienação parental, uma iníqua falácia”, conduzido pela advogada Cláudia Galiberne Ferreira e pelo juiz Romano José Enzweiler, a partir de uma extensa pesquisa realizada por eles no Brasil e no mundo.
Além disso, apesar de uma intensa campanha dos apoiadores de Gardner, a síndrome da alienação parental não foi incluída na quinta edição do Manual de diagnóstico e estatística dos transtornos mentais (DSM-5) – que lista todos os distúrbios mentais já identificados.
As críticas ao criador da SAP, que se suicidou em 2003, miram também afirmações polêmicas, feitas em sua obra seminal, True and false accusations of child sex abuse (Verdadeiras e falsas acusações de abuso sexual infantil, numa tradução livre). “Nós estamos vivendo tempos perigosos. A histeria do abuso sexual é onipresente”, escreveu Gardner já na introdução do livro lançado em 1992 – um catatau de quase 700 páginas publicado pelo próprio autor, como todas as suas obras. Mais adiante, sob o intertítulo “Incrementando a autoestima”, o autor afirmou que os pais pedófilos “precisam ser ajudados a entender que a pedofilia tem sido considerada normal pela vasta maioria dos indivíduos na história do mundo”.
Para o autor, os que sofrem do distúrbio devem “aprender a se controlar se quiserem se proteger das punições draconianas que, na nossa sociedade, se impõem sobre aqueles que agem por seus impulsos pedófilos”. Reações que, por si sós, causariam problemas: “É porque nossa sociedade reage de forma exagerada a isso [pedofilia] que as crianças sofrem”, escreveu.

Analdino, o pai da lei brasileira

A despeito da polêmica sobre Gardner e a SAP, o Congresso brasileiro aprovou uma lei sobre o assunto. Segundo juristas ouvidos pela Pública, o Brasil foi o único país do mundo a fazê-lo. Tal fato deve ser creditado, ainda que não exclusivamente, a um bacharel de direito de 65 anos.
Natural de Goiânia e radicado em São Paulo, Analdino Rodrigues Paulino Neto é presidente e cofundador da Associação de Pais e Mães Separados (Apase) – ONG criada em 1997 com o objetivo de dar apoio e aconselhamento a pais e mães em separações litigiosas. Parte desse aconselhamento ocorre em grupos de discussão online, e foi num deles que surgiu o embrião da Lei 12.318, a partir da postagem de um artigo de Richard Gardner.
Enquanto bebericava um chocolate quente no ruidoso café da Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, Paulino Neto explicou que resolveu estudar processos de divórcio para atuar em causa própria. “Quando a mãe da minha filha ficou grávida, ela começou a se achar muito poderosa. Aí eu percebi que ia ter dificuldades”, disse. No processo de separação, ele disse ter sido judicialmente afastado da filha e da mulher mais de 20 vezes. Sempre por queixas de agressão, segundo ele, infundadas.
O fenômeno, ainda de acordo com Paulino Neto, teria se tornado frequente na nossa sociedade após a Constituição de 1988, quando as mulheres supostamente conquistaram uma situação de igualdade. “Agora, pra sair da igualdade de relacionamento para esse, digamos, coronelismo das mulheres, foi um pulo, né?” Para exemplificar a “dominação feminina”, o presidente da Apase citou a Lei Maria da Penha, criada em 2006 com o objetivo de coibir a violência doméstica. “Tem mulher até que se automachuca. Ela bate a perna num lugar, houve um mínimo ferimento, aí ela vai na delegacia e fala: ‘Foi o fulano que fez isso comigo’.”
O mesmo estaria ocorrendo com as acusações de abuso sexual. Segundo Paulino Neto, 80% delas são falsas e constituem-se na mais grave forma de alienação parental. Por outro lado, segundo a Childhood Brasil, ONG voltada para a proteção de crianças e adolescentes, por fatores como medo do abusador ou descrença na Justiça, apenas uma fração de mulheres e crianças denuncia abusos. A organização estima que há sete vezes mais casos do que o relatado.
Ainda assim, em 2015 foram mais de 14 mil casos de abuso sexual reportados em todo o país, apenas através do Disque 100 – serviço de atendimento anônimo voltado para crimes contra crianças e adolescentes. Ou o equivalente a uma denúncia a cada 37 minutos. No mesmo estudo, a ONG mostrou que 75% dos casos de violência contra crianças e adolescentes foram perpetrados por alguém da família; e 72% deles ocorreram na casa da vítima ou do suspeito.
Paulino Neto se contorceu na poltrona de couro vermelho quando o assunto enveredou pela possibilidade de a lei de alienação parental ajudar a livrar da Justiça pais abusadores. O próprio termo “abuso sexual” o incomoda. Ele prefere incesto. “Acho que devemos sempre ouvir a outra parte e não devemos afastar a criança da convivência com o pai”, disse.
Quando insisti na pergunta sobre a possibilidade de abusadores estarem usando alienação parental como escudo e de crianças estarem sendo condenadas a viver com seus algozes, Paulino Neto se irritou. “Amigo, nem teu cu está blindado! Não tem nada blindado. Não existe isso. Não existe o impossível. O que eu quero dizer é que a lei não foi criada pra isso. Ela não foi inventada pra isso, e os estudos sobre alienação parental nunca tiveram esse objetivo”, afirmou.
Alguns dias depois e algumas centenas de metros adiante na avenida Paulista, o ex-deputado federal Régis de Oliveira, autor oficial da Lei 12.318, acomodou-se numa cadeira de rodinhas, diante da imponente sala de reuniões de seu escritório no 17o andar. O advogado, ex-juiz, e prefeito acidental de São Paulo pelos 19 dias em que Celso Pitta esteve cassado, não se lembra das circunstâncias que o levaram a propor o texto. Desconhece uma síndrome que tenha embasado o pré-projeto e nunca ouviu falar de Richard Gardner. Tampouco tem notícias de mães que estejam perdendo a guarda para suspeitos de abuso.
“Isso não é um problema legal”, afirmou quando confrontado com a possibilidade. “É problema do pai canalha que está se utilizando da lei.” Uma lei que, segundo Oliveira, tem o mérito de dar mais recursos e, principalmente, mais agilidade ao julgador. “Se houver alguém utilizando a lei pra manipular o juiz… Bem, o juiz que fique esperto”, concluiu.

Na dúvida, puniu-se a mãe

Em agosto de 2013, a psicóloga forense do estado do Rio de Janeiro responsável pelo caso Igor terminou o primeiro laudo. Nele, afirmou que era possível que o menino “tenha sido vítima de um abuso sexual real – mas não nos pareceu que fosse praticado pelo pai”. Para tal conclusão, a perita baseou-se sobretudo no fato de que, durante as entrevistas, o convívio da criança com o pai havia sido harmonioso.
A psicóloga afirmou também que era possível que Igor estivesse “sendo vítima de alienação parental”, o que era grave, pois “a crença no abuso gera os mesmos sintomas negativos do abuso real”. Diante disso, sugeriu que Igor tivesse “o convívio com o núcleo materno restringido devido à crença da família materna no abuso”. Após este, vários outros laudos seriam elaborados na tentativa de entender o que realmente se passara na família de Igor e Iolanda. Todos eles, contudo, acabariam por se basear nessa primeira avaliação.
Foi essa avaliação também a principal fonte das ameaças que pontuaram uma audiência sobre os rumos do processo, ocorrida em meados de 2014. O advogado do pai afirmava que, se não fosse feito um acordo, a guarda acabaria invertida, com base na lei de alienação parental. “O risco era eu perder o contato total com o meu filho”, disse Iolanda. “Porque nenhuma prova era tratada como prova. Os laudos do IML e da pediatra não eram mais levados em consideração.”
Sem ver outra saída, ela optou por aceitar o que lhe era proposto: guarda compartilhada. O acerto pôs um ponto final no processo de custódia, e o inquérito policial que investigava o possível estupro de vulnerável foi arquivado. Igor passou a viver sete dias com a mãe e sete dias com o pai. A mãe conta que aos 5 anos ele tinha crises nervosas: batia-se, quebrava móveis, acusava a mãe de não estar fazendo nada por ele.
Iolanda passou a cogitar medidas drásticas. Ficou noites no computador em busca de países que não tivessem acordo de extradição com o Brasil. “Não é difícil”, disse num fim de semana de novembro em que esteve em São Paulo. “É só dar um Google. Agora, dar um Google é diferente de sair com uma criança, sem passaporte, foragida. Que vida eu ia oferecer pro meu filho depois? Ia fazer o quê? Jogar bolinha num sinal na Finlândia?”

Uma cidadezinha catarinense no centro dos debates sobre a alienação parental

Apesar do papel de destaque que vem desempenhando em casos como o de Iolanda, a lei de alienação parental é pouco discutida no Brasil. Algo que tende a mudar se depender da comunidade jurídica de uma pequenina cidade catarinense. Encravada na serra Dona Francisca, quase na fronteira com o Paraná, São Bento do Sul é limpa e organizada, tem um clima enregelante quase o ano inteiro e é constantemente assolada por nevoeiros opacos e melancólicos.
Já no meio da tarde, eles costumam encobrir as construções de arquitetura germânica e as casas modernas de condomínios fechados, como aquela em que vive o casal Cláudia Galiberne Ferreira, advogada especialista em direito civil, e Romano José Enzweiler, juiz da vara cível e diretor do fórum da cidade.
Pouco antes das 20h do dia 20 de outubro passado, Edson Luiz de Oliveira, também juiz, mas da vara da família, estacionou seu Fiat Freemont em frente à residência de Enzweiler. No banco do passageiro, trajando um vestido florido, arrematado por uma blusa de lã bordô, estava Maria Clara Sottomayor, a ministra do Tribunal Constitucional de Portugal que se tornou uma das vozes mais eloquentes contra a forma como a teoria de Gardner vem sendo usada. Ela viajara até ali a convite do Judiciário catarinense e, no dia seguinte, seria a estrela de um debate sobre alienação parental.
Enzweiler abriu a porta da frente antes que todos desembarcassem do carro. Segurava um garfo de churrasco na mão direita e envergava um paternal avental preto sobre a polo amarelo-gema. “Vamos entrando que eu vou assar uma carninha pra vocês”, disse com um sotaque sulista que ornava perfeitamente com a frase.
Mais tarde, em pé diante da churrasqueira (que, por causa do frio, fica numa sala envidraçada), Enzweiler explicou como a discussão sobre o tema havia surgido ali mesmo, num papo entre ele, a esposa e Oliveira em 2014. Instigado pela conversa, o casal começou a levantar os dados da comarca onde atuava. Não demorou para que expandissem para todo o Brasil e depois para o exterior a pesquisa que daria origem a dois artigos jurídicos sobre a alienação parental: “Síndrome da alienação parental, uma iníqua falácia” e “Duas abordagens, a mesma arrogante ignorância: como a SAP e a violência doméstica se tornaram irmãs siamesas”.
Segundo Enzweiler, eles constataram que, além dos casos em que há, de fato, difamação por parte das mães, a lei tem sido usada em duas situações que subvertem a justiça. Na primeira, como barganha por acordos, principalmente relativos à guarda compartilhada e ao pagamento de pensão alimentícia. “As mães, assustadíssimas porque a lei é muito draconiana, acabam se sensibilizando pra proteger o filho e aceitam acordos desfavoráveis”, disse.
Na segunda situação, a tese da alienação é usada como defesa de abusadores, muitas vezes na esfera criminal. “A perversidade dessa argumentação é que não há como negar. Toda vez que a mãe acusa o pai, ele alega que ela está alienando. É um círculo vicioso perverso em que não há alternativa.” Ainda de acordo com Enzweiler, a existência da lei permite também que, em certas ocasiões, casos sejam julgados de forma automática. “Sentenças são proferidas com base num slogan, algo que, infelizmente, acontece muito no nosso sistema judiciário”, disse.
Na noite seguinte, uma sexta-feira fria como quase todas por ali, o juiz se aboletou ao lado da esposa no auditório do campus local da Universidade da Região de Joinville (Univille). A plateia, composta sobretudo por estudantes de direito, advogados, juízes e desembargadores, ocupava todos os 350 lugares. O debate começou um pouco depois das 19h, com a fala da desembargadora Hildemar Meneguzzi de Carvalho, defensora da Lei 12.318. Na segunda rodada de perguntas, ela foi questionada sobre a possibilidade de a lei ajudar a encobrir abusos sexuais. A resposta fez Enzweiler se contorcer na cadeira, enquanto Oliveira, que também participava do debate, baixava a cabeça e cobria os olhos com a mão.
“A vida é feita de escolhas. E somos nós, mulheres, que escolhemos o nosso companheiro, o nosso marido”, argumentou. “Não tem como eu dizer que alguém me obrigou a viver com esse ou com aquele companheiro. E, se a relação não está boa, se existe violência, eu penso que a mulher deve sair dessa relação.”
Ao final do evento, questionei a desembargadora sobre o grande número de mães que se dizem injustamente tachadas de alienadoras após acusarem os ex-maridos de molestar os filhos. Ela alegou ter limitações para comentar casos que não conhece, mas, quando insisti, afirmou que o mais provável é que as acusações sejam falsas.
Antes disso, ainda no debate, a ministra portuguesa Maria Clara Sottomayor assumiu o microfone na condição de opositora à lei. “Não aceitamos, sequer como possibilidade, menos que mínima, entregar a guarda de uma criança a um indivíduo que poderá abusar dela. Mesmo que a gente não tenha certeza de que isso aconteceu”, exclamou.
Depois argumentou que, por mais injusto que seja, para um adulto, enfrentar uma falsa acusação de assédio sexual, isso não se compara à temeridade de entregar a guarda de uma criança ao abusador. E que é comum que julgadores – por serem adultos e, na maior parte das vezes, homens – criem empatia com a ideia de que o pai esteja sendo falsamente acusado. Isso, aliado ao fato de que provas materiais de abuso são extremamente difíceis de obter, estaria dando vantagem aos molestadores nos tribunais.
“Aparece um exame de medicina legal com resultado inconclusivo”, exemplificou. “Imediatamente os julgadores ficam com a consciência tranquila e dizem que não há abuso sexual. Imediatamente partem os advogados para a ideia de falsidade da acusação e para a inversão da guarda em prol do suspeito. Isso está de fato a acontecer no Brasil, em Portugal, na Espanha e em outros países”, disse, reiterando que o uso da SAP ocorre mesmo em países onde não há uma lei específica para tanto. Por fim, Sottomayor afirmou que não há lógica na existência de um texto legal que combata falsas acusações de abuso. “Por que não há então uma teoria que aponte as falsas acusações de furto, de fraude, de roubo?”, provocou.

Falsas acusações

Ainda que não se tenha números confiáveis dos casos de alegações inverídicas, elas de fato existem. Assim como existem mães que fazem de tudo para destruir a reputação de seus ex. Não são poucos os relatos de pais que mergulharam em depressão após serem injustamente acusados das mais diversas atrocidades.
Em um artigo escrito em 2009, a psicóloga da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Marcia Ferreira Amendola debruçou-se sobre o assunto das falsas acusações. No texto, ela afirmou que os sintomas de uma criança que sofreu abuso real podem coincidir com os de uma que passou por um período de tensão como, por exemplo, um divórcio. E que uma criança pode “mentir para proteger ou agradar uma pessoa da qual depende afetivamente”. Ou ainda responder de acordo com o que acha que vai satisfazer quem pergunta, um psicólogo forense, por exemplo. “Não existe um grau de credibilidade absoluta para o testemunho de uma criança”, escreveu.
Ainda segundo Amendola, é possível que uma criança invente um abuso, mas isso normalmente ocorre quando ela é induzida por um adulto. “Nessas condições, a criança tende a acreditar no que lhe foi imposto como sendo a sua verdade, elaborando um registro psíquico de um abuso sexual”.
A importância da acurácia dos depoimentos aumenta diante do fato de que, em casos de estupro e de abuso, a fala da vítima é, frequentemente, a única prova. “Ninguém estupra ou abusa na frente de outro”, afirmou o juiz Edson Luiz de Oliveira. “Não há como ser desprezada a palavra da vítima. E normalmente ela é o que me basta para o convencimento de que eu necessito para a condenação.” Segundo ele, contudo, é importante que esse depoimento seja colhido de forma adequada, por profissionais competentes e bem treinados – o que, fez questão de ressaltar, não ocorre na maioria dos fóruns brasileiros.
Diante disso, a Childhood Brasil trabalha para melhorar a forma como as crianças vítimas de abuso são escutadas pela Justiça. O método que eles propõem, batizado de “escuta protegida”, é bastante simples: uma sala em que entram apenas o entrevistador e a vítima e onde tudo é gravado em vídeo. A criança tem à sua disposição alguns bonecos com gêneros identificados, e o entrevistador, normalmente um psicólogo ou pedagogo, segue um protocolo de perguntas.
Desde 2015, o Congresso analisa um projeto de lei que, se aprovado, vai regulamentar esse tipo de procedimento. Nele, a vítima é escutada apenas uma vez, diferentemente da maratona de oitivas que hoje, de acordo com o gerente de advocacy da Childhood Brasil, Itamar Gonçalves, costuma chegar às dezenas. Segundo ele, a ONG trabalha em conjunto com as comarcas brasileiras para instalar salas de entrevista e ajudar na capacitação de profissionais. Até o momento, cerca de 200 fóruns já foram capacitados. O número tende a crescer, mas está bem abaixo do necessário, e a maioria das crianças abusadas ainda não é escutada da maneira ideal.
“No Rio de Janeiro, o comum é acareação. Senta o pai, a criança, e a psicóloga pergunta: ‘O que você disse que o seu pai fazia em você?’”, disse a psicóloga carioca Ana Maria Iencarelli, autora do livro Abuso sexual – uma tatuagem na alma de meninos e meninas. Ela também participou do debate em São Bento do Sul e conversou com a reportagem algumas horas antes, no restaurante do hotel.
Iencarelli defende o sistema da Childhood, que, por ser baseado num protocolo único, evitaria “os achismos dos laudos de psicólogos que saem interpretando o que querem”. Além disso, uma vez que os dados são padronizados, eles poderiam embasar futuras pesquisas – atualmente não há padronização nem quanto à forma de se referir ao abuso. Há locais em que se fala em “ofensa sexual” ou “violência sexual”, por exemplo.
“Quando as crianças são bem perguntadas, elas falam”, afirmou Iencarelli. “E se elas forem bem perguntadas e estiveram repetindo o texto de outra pessoa, elas dão dicas de que foi decorado.” Por outro lado, se a entrevista for mal feita, elas podem se retrair ou voltar atrás, ainda mais se houver a presença ou a suspeita da presença do abusador (algo que acontece frequentemente em entrevistas feitas em salas com espelho falso). Os abusadores, explica a psicóloga, criam uma linguagem particular com a vítima, que vai além das palavras. Pode permear gestos e olhares, sinais subliminares de intimidação, o que reforça as críticas ao método da acareação. “É como se o abusador fosse levando a criança para uma espécie de transe. E a mente dela dá uma descolada, porque não é suportável lidar com o fato de um pai usar o corpo dela daquela forma”, explicou Iencarelli.
Eles costumam controlar as vítimas também por meio de ameaças: “Se você contar, eu mato a sua mãe” é a mais comum. Isso faz com que a manutenção do segredo ganhe extrema importância e põe as crianças num estado de preocupação constante. Estão num esforço contínuo para esquecer, mas, ao mesmo tempo, aflitas pelo medo de um lapso que revele o crime. “É uma tortura constante, como se vivessem num campo de concentração”, disse a psicóloga carioca. E ficam sequelas: as vítimas costumam ter problemas de aprendizado e de relacionamento.
A tese do domínio do abusador sobre a vítima se choca com um dos pilares da teoria de Gardner. O norte-americano afirma que o fato de uma acusação de abuso surgir após o divórcio é um indício de que ela é falsa, de que está servindo de instrumento de vingança. Já para Iencarelli isso se deve ao fato de o abusador não estar mais presente, sob o mesmo teto, o que libera a criança da dominação e permite a denúncia.
A psicóloga é uma ferrenha opositora da lei de alienação parental e da teoria de Gardner, que, para ela, foi enfiada goela abaixo dos peritos forenses. E resume a situação da seguinte forma: “O direito à convivência está suplantando o dever da proteção”.
No final de 2015, Igor estava com 6 anos. Após um período de sete dias na casa do pai, fruto do acordo de guarda compartilhada, voltou a se queixar de dor, pediu à mãe que fizesse alguma coisa, e Iolanda novamente o levou à pediatra. A médica examinou o menino, constatou uma pequena lesão anal e perguntou se a mãe sabia de onde vinha aquele problema, ou se ele já tinha se queixado antes. “Pode falar que foi o meu pai”, Igor exclamou, colocando as rodas legais novamente em movimento.
A pediatra cobriu Iolanda de perguntas, enquanto a recepcionista acionava a polícia. A mãe explicou que já tinha feito de tudo, que não podia mais denunciar, que se fosse adiante correria o risco de perder completamente o contato com o filho, mas a médica não acreditou, ameaçou internar Igor. “Ela achou que eu era conivente. Claro, porque todo mundo acredita nesse mundo rosa. Todo mundo acredita que não se pode abusar de criança, que não se pode bater em mulher”, disse Iolanda, que, completamente aflita, agarrou o filho e foi embora.
Mas era tarde. A pediatra denunciou o caso à Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), o que gerou um segundo inquérito contra o pai. Iolanda foi chamada a depor e Igor, submetido a um novo exame de corpo de delito que não apontou indícios de abuso – resultado de pouca relevância devido ao tempo transcorrido desde a queixa. Além disso, o menino se viu mais uma vez obrigado a contar como havia sido o suposto abuso. No documento produzido a partir da conversa o investigador afirmou: “Não verificamos nas declarações da criança, a princípio, indícios de terem sido contaminadas (sugestionadas) por terceiros”.
Antes disso, logo após o término da entrevista, o policial quis falar com Iolanda. Disse que Igor havia pedido a ele uma garantia de que nunca mais seria obrigado a ver o pai, algo que ele não podia oferecer. “Aquilo foi a gota d’água”, disse Iolanda. “Resolvi não ser mais conivente. Resolvi que não entregaria mais meu filho.”
Ao decidir isso, ela estava indo contra o acordo que mantinha Igor sete dias em cada casa e dando combustível para as acusações de alienação parental. Com base nela, o pai pediu a inversão total da guarda, que foi concedida em julho de 2015. O processo criminal gerado pela denúncia da médica corre em segredo de justiça, mas já há uma sentença absolvendo o réu.
Iolanda gastou o dinheiro de um apartamento na zona sul do Rio com custas processuais e atualmente mora com a mãe. Só pode ver o filho aos sábados e aos domingos, durante o dia, em visitas assistidas. Desconfia que o pai continue abusando de Igor, mas acha que o menino se resignou a essa condição. “Eu tento não falar, não tocar no assunto e aceitar que essa é a realidade dele, que ele tem de viver com isso. Então digo só que continuo lutando pra reverter a situação na Justiça.”
*A fim de proteger a identidade de mãe e filho e de não subverter o direito de defesa do acusado, os nomes Igor e Iolanda são fictícios. Fatos, dados e locais que pudessem identificar esses personagens foram suprimidos do relato.

Ilustrações de Carolina Teixeira (Itzá). Infografia de Bruno Fonseca/Agência Pública
Crédito do gif em destaque: Gifart.org

Projeto, “Cada Uma”, valoriza a diversidade e autoestima feminina, sem retoques



Cada Uma é o nome do projeto dos fotógrafos Felipe Mariano e Jessica Chamma que está valorizando a diversidade e autoestima feminina.

Além de ensaios fotográficos belíssimos, o projeto entrevista mulheres bastante diferentes umas das outras em seu canal no YouTube.

O Cada Uma foi criado em 2015. Ele convida as mulheres a posarem nuas para retratos 100% autênticos, sem retoques. A beleza é capturada na sua forma mais pura e verdadeira.

Veja algumas fotos:


























Com informações do Celso Bessa / Fotos: Repodução/Facebook

343 LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) foram assassinados no Brasil em 2016

O levantamento de mortes foi realizado pelo Grupo Gay da Bahia, com base em notícias e informações passadas por grupos e pessoas que conheciam as vítimas



Os corpos de dois professores foram encontrados carbonizados em um porta-malas, em Santa Luz, na Bahia. Um homem de 34 anos morreu degolado e esquartejado, em Porto Velho, Rondônia. A 4.300 km dali, em Belém, capital do Pará, outro homem morreu com 80 facadas atravessadas no corpo. Mesmo Estado em que Brenda foi espancada e jogada do alto de uma passarela, na cidade de Castanha. Mesmo Pará onde um menino de 10 anos morreu violentado e espancado. No Paraná, uma menina trans de 14 anos foi encontrada morta a beira de um lago. Em Porto Alegre, um homem trans morreu com 17 tiros e terminou arrastado pelo carro de seus assassinos.
Essas são apenas algumas das 343 mortes de pessoas LGBT registradas em 2016 no Brasil. Uma morte a cada 25 horas. Um ano em que os registros e a violência bateram recorde, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia que, há 37 anos, faz o trabalho de resgatar dados e informações nas cinco regiões do país para revelar até onde vai a homo-lesbo-transfobia – em 2015, haviam sido levantados 318 casos. O último relatório do GGB foi divulgado nesta segunda-feira (23).
Segundo o levantamento, os crimes contra LGBTs atingem todas as cores, idades e classes sociais. Dos dados levantados, 64% das vítimas eram brancas e 36% negras. A mais jovem tinha 10 anos, a mais velha 72. Mortes de pessoas entre 19 a 30 anos foram a maioria – 32% dos casos. Em seguida, menores de 18 anos – 20,6% dos casos. Vítimas já na terceira idade representaram 7,2% dos casos. O GGB aponta que os dados também denunciam a grande vulnerabilidade a que estão expostos adolescentes LGBT no país.

Fonte: Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil/Grupo Gay da Bahia
Quando se fala de vulnerabilidade, as travestis e transexuais seguem sendo a população que mais sofre violência. O relatório do Grupo Gay afirma que , proporcionalmente, uma mulher trans tem 14 vezes mais chance de ser assassinada do que um homem cisgênero gay. Comparado aos números dos Estados Unidos – que registrou no ano passado 21 trans assassinadas contra 144 no Brasil – o risco de brasileiras morrerem por morte violenta é 9 vezes maior. São elas também quem têm mais chance de morrer na rua, por arma de fogo ou espancamentos.
Os gays, por outro lado, são o grupo que registrou maior número de mortes em 2016: 173. Seguido por trans e travestis, com 144. Houve 10 vítimas identificadas como lésbicas, 4 bissexuais e 12 heterossexuais – pessoas em relacionamento com pessoas trans do sexo oposto ou que morreram por defender LGBTs, como foi o caso do ambulante assassinado no metrô de são Paulo, na noite de Natal.
Este ano, além dos homicídios, o grupo decidiu incluir na contagem os suicídios de pessoas LGBT, motivados pelo preconceito e discriminação contra identidade de gênero e/ou orientação sexual.
Sem estatísticas oficiais e sem punição
O relatório também chama a atenção para a falta de estatísticas e dados oficiais relativos a violência contra a população LGBT no país. As próprias polícias não possuem sistema ou protocolo para inserir termos relativos a sexualidade em seus boletins, o que dificulta o levantamento de dados e as investigações. O relatório aponta, por exemplo, que menos de 10% dos casos tiveram processo aberto para investigação e apenas 17% dos homicídios contabilizados tiveram o autor identificado. Ou seja, apenas em 60 casos.
“Tais números alarmantes são a ponta de um iceberg de violência e sangue, pois não havendo estatísticas governamentais sobre crimes de ódio, são sempre subnotificados já que nosso banco de dados se baseia em notícias publicadas na mídia, internet e informações pessoais”, explica o antropólogo Luiz Mott, que coordena o site Quem a Homotransfobia matou hoje?, responsável pelo levantamento de dados do relatório.

Fonte: Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil/Grupo Gay da Bahia
O documento do GGB aponta ainda que em pelo menos metade dos casos, as vítimas conheciam seus agressores: 34% morreram pelas mãos de companheiros ou ex-companheiros, 13% foram mortos por familiares. Por outro lado, “clientes, profissionais do sexo e desconhecidos em sexo casual foram responsáveis por 47,5% desses crimes de ódio”, diz o texto.
Com poucos avanços em políticas públicas – a lei de criminalização arquivada – e o reforço da onda reacionária no país, o relatório não parece otimista para 2017. Nos primeiros 22 dias do ano, 23 mortes de pessoas LGBT já foram contabilizadas pelo site responsável pelo relatório.
O Relatório na íntegra pode ser acessado aqui.


Fonte: Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil/Grupo Gay da Bahia

Breve história crítica dos feminismos no Brasil

Excluídas da história oficial, as mulheres fazem do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência. Neste ensaio, publicado na...