Religiões afro-brasileiras, uma questão filosófica

Um texto de 2014 que vale a pena ser lido hoje e sempre!

Nei Lopes é autor de, entre outros livros, Kitábu, o livro do saber e do espírito negro-africanos (Ed. Senac-Rio, 2005).

O juiz Eugenio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, rejeitou a retirada da internet de 15 vídeos contra o candomblé e a umbanda, alegando que os cultos afro-brasileiros “não constituem religião”, pois não se baseiam em apenas um livro nem têm apenas um deus. Os vídeos foram postados por representantes de igrejas evangélicas. No artigo abaixo, o escritor Nei Lopes explica os fundamentos dos cultos de origem africana e seu caráter religioso.

Em junho de 1993, a Suprema Corte dos Estados Unidos garantiu aos praticantes de cultos de origem africana o direito de sacrificar animais em suas cerimônias religiosas. Esse relevante fato histórico deveu-se, certamente, à articulação das casas de culto de origem cubana estabelecidas no país a partir da década de 1950, as quais na década de 1970 já tinham, entre si, a Church of The Lukumi Babalu Ayé, a qual se propunha, quando de sua fundação, a ter sede, escola, centro cultural e museu, para sua comunidade e público em geral. Na contramão de conquistas como essa, no Brasil atual chega-se a negar aos cultos afro-originados até mesmo a condição de religiões.

Ritual de iniciação das filhas-de-santo. Bahia, Brasil, 1951. Fotografia de José Medeiros/Acervo IMS.

Filosofia. Em 1949 era publicado em Paris o livro La philosophie bantoue, obra em que o padre Placide Tempels dava a conhecer o resultado de suas pesquisas de campo realizadas no então Congo Belga. Contrariando toda uma concepção preconceituosamente negativa a respeito do pensamento dos povos africanos, o livro revelava a existência, entre os pesquisados, de uma filosofia baseada na hierarquia das forças vitais do Universo, a partir de uma Força Superior. Assim, quanto aos seres humanos, aprendia o missionário, entre outros postulados, que todo ser humano constitui um elo vivo na cadeia das forças vitais: um elo ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando, abaixo de si, a linhagem de sua descendência. Consoante esses princípios, todos os seres, vivos ou mortos, se inter-relacionam e influenciam. E a influência da ação de forças tendentes a diminuir a energia vital se neutraliza através de práticas que façam interagir harmonicamente todas as forças criadas e postas à disposição do homem pela Força Suprema.

Meio século depois, outro missionário, o padre espanhol Raúl Ruiz Altuna, pesquisando a partir de Angola, conseguia estabelecer outra hierarquia, traduzida nos seguintes ensinamentos:

A Força Suprema reconhecida pelo pensamento africano corresponde ao Ser Supremo das religiões monoteístas. Criador do universo e fonte da vida, esse Ser infunde respeito e temor. Mas é tão infinitamente superior e distante que não é cultuado, ou seja: não pode nem precisa ser agradado com preces nem oferendas. Abaixo desse Ser situam-se, no sistema, seres imateriais livres e dotados de inteligência, os quais podem ser gênios ou espíritos.

Os gênios são seres sem forma humana, protetores e guardiões de indivíduos, comunidades e lugares, podendo temporariamente habitar nos lugares e comunidades que guardam, e também no corpo das pessoas que protegem. Já os espíritos são almas de pessoas que tiveram vida terrena e, por isso, são imaginados com forma humana. Podem ser almas de antigos chefes e heróis, ancestrais ilustres e remotos da comunidade, ou antepassados próximos de uma família.

Ao contrário do Ser supremo, gênios e espíritos precisam ser cultuados, para que, felizes e satisfeitos, garantam aos vivos saúde, paz, estabilidade e desenvolvimento. Pois é deles, também, a incumbência de levar até o Deus supremo as grandes questões dos seres humanos. Assim, já que contribuem também para a ordem do Universo, eles devem sempre ser lembrados, acarinhados e satisfeitos, através de práticas especiais. Essas práticas, que representam um culto em si, podem, quando simples, ser realizadas pelo próprio interessado. Mas, quando complexas, devem ser orientadas e dirigidas por um chefe de culto, um sacerdote.

Dentro dessas linhas gerais, segundo entendemos, foi que se desenvolveu a religiosidade africana no Brasil e nas Américas.

Relevância. Os estudos dos padres Tempels e Altura desenvolveram-se entre povos do grupo Banto, do centro-sudoeste africano. Mas outros estudos, inclusive de sábios e cientistas nativos, nos deram conta de que, embora as religiões negro-africanas tenham suas peculiaridades, todas elas comungam de uma ideia central, a da inter-relação entre as forças vitais, sendo vivenciadas segundo princípios comuns.

Por conta dessas formulações, em 1950, no texto Philosophie et religion des noirs (revista Présence Africaine, nº especial 8-9), o antropólogo francês Marcel Griaule primeiro indagava se seria possível aplicar as denominações “filosofia” e “religião” à vida interior, ao sistema de mundo, às relações com o invisível e ao comportamento dos negros. Perguntava-se, ainda, sobre a existência de uma filosofia negra distinta da religião e de uma religião independente, de uma metafísica, enfim.

Ao final de sua indagação, o cientista afirmava a existência de uma verdadeira ontologia (parte da filosofia que estuda a existência) negro-africana, concluindo pela antiguidade do pensamento nativo, nivelando algumas de suas vertentes a concepções filosóficas asiáticas e da Antiguidade greco-romana; e ressaltando a necessidade e a importância do estudo desse pensamento. Quatro décadas depois, o já citado Altuna, fazendo eco a Griaule, afirmava: “Basta debruçarmo-nos sobre esse conjunto de crenças e cultos para encontrar uma estrutura religiosa firme e digna”.

Definição. O termo “religião”, segundo N. Birbaum, referido no Dicionário de Ciências Sociaispublicado pela Fundação Getúlio Vargas, em 1986, define um conjunto de crença, prática e organização sistematizadas, compreendendo uma ideia que se manifesta no comportamento dos seguidores. Daí aferimos que toda religião se define, em princípio, por um culto prestado a uma ou mais divindades; pela crença no poder desses seres ou forças cultuados; e em uma liturgia, expressa no comportamento ritual; e finalmente pela existência de uma hierarquia sacerdotal.

Pelo menos desde meados do século XIX, as religiões chegadas da África ao Brasil, apesar de todas as condições adversas, conseguiram recriar, no novo ambiente, as crenças e as práticas rituais de sua tradição ancestral, dentro dos princípios científicos que definem o que seja religião.

Na própria África já se distinguia, por exemplo, o feiticeiro (ndoki, entre os bantos), agente de malefícios, do ritualista (mbanda ou nganga), manipulador das forças vitais em benefício da saúde, do bem-estar e do equilíbrio social de sua comunidade. E no Brasil, como em outros países das Américas, as diversas vertentes de culto chegaram a tal nível de organização que constituíram, de modo geral, categorias sacerdotais altamente especializadas. Por exemplo, no candomblé: um babalorixá (“pai daquele que tem orixá”, e não “pai de santo”, como se traduziu derrogatoriamente) não tem a mesma função de um “babalaô” (“pai do segredo”), responsável por interpretar as determinações do oráculo Ifá. Uma equede (sacerdotisa que atende os orixás quando incorporados) não tem as mesmas funções de uma iá-tebexê (a responsável pelos cânticos rituais). Da mesma forma que um axogum (sacrificador ritual) não tem as mesmas funções de um alabê (músico litúrgico), por exemplo.

As religiões de matriz africana no Brasil, em suas várias vertentes, praticam uma liturgia complexa, que compreendem rituais privados e públicos. Nas práticas privadas, todo ritual se inicia pela invocação nominal dos ancestrais, remotos e próximos, dos fundadores do templo, em listas tão mais longas quanto mais antigo for o “fundamento” da casa. Nas festas públicas, notadamente no chamado candomblé jeje-nagô, oriundo da região africana do Golfo do Benin, as divindades (orixás ou voduns) se manifestam numa ordem rigorosamente obedecida, da primeira à última a entrar na roda das danças. E por aí vamos.

Constitucionalidade. Não é o monoteísmo que caracteriza uma religião. Se assim fosse, as religiões orientais como o hinduismo, o taoísmo etc. não seriam como tal consideradas. Muito menos o é a circunstância de as práticas religiosas serem ou não baseadas em textos escritos. A propósito, o historiador nigeriano I.A. Akinjogbin, em artigo na coletânea Le concept de pouvoir em Afrique (Paris, Unesco, 1981), assim se manifestou: “O conhecimento livresco tem um valor formal e importado, enquanto o saber informal é adquirido pela experiência direta ou indireta. Os conhecimentos livrescos não conferem sabedoria (…) O ensinamento tradicional deve estar unido à experiência e integrado à vida, até porque há coisas que não podem ser explicadas, apenas experimentadas e vividas”.

Vejamos, em conclusão, que toda a tradição africana de culto aos orixás, da qual no Brasil se originaram principalmente o candomblé da Bahia (nagô e jeje), o xangô pernambucano, o batuque gaúcho e a umbanda fluminense, tem uma base filosófica. Esse fundamento é, em essência, o vasto conhecimento que emana da tradição iorubana de Ifá, o oráculo que tudo determina, em todos os momentos da vida de uma pessoa, de uma família, de uma cidade, de uma nação etc. Da tradição de Ifá é que vêm, por exemplo, a origem dos orixás, sua mitologia, suas predileções, suas cores etc. O popular jogo de búzios é uma forma simplificada de consulta ao oráculo.

Esse corpo de doutrina, compreendendo muitos milhares de parábolas, foi transmitido de geração a geração entre os antigos babalaôs, na África e nas Américas. E nos tempos atuais, embora não unificado, já começa a ter circulação inclusive na internet.

Pois essa tradição remonta a muitos séculos; e sua história se conta a partir do momento em que Oduduá, o grande ancestral dos iorubás, cuja presença histórica, no século XII d.C., é atestada cientificamente (cf. A. F. Ryder, História Geral da África, Unesco/MEC/UFScar, vol. IV, 2010, p. 389), após fundar a antiga cidade de Ifé, enviou seus diversos filhos em várias direções, para fundar cada um o seu reino.

Mas esta é apenas uma parte da alentada e sábia tradição religiosa que os antigos africanos legaram ao Brasil. A qual, como um todo, goza da proteção constitucional do artigo 5º da Constituição Federal, bem como daquela assim enunciada: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, parágrafo 1º).

Nei Lopes é autor de, entre outros livros, Kitábu, o livro do saber e do espírito negro-africanos (Ed. Senac-Rio, 2005).

Igreja Universal inseriu mais de meio bilhão de reais na TV Record só em 2016


Dízimo para TV Record é ilegal
Via Paulo Lopes e UOL 

Nos últimos dez anos, a Igreja Universal transferiu para a TV Record cerca de R$ 2,3 bilhões, a título de compra de um horário de programação que vale pouco, de madrugada, para o programa “Fala que eu te escuto”.


O dono de uma e outra, como se sabe, é o mesmo, o bispo Edir Macedo.

A maior igreja em número de membros considerada neo pentecostal, a Universal do Reino de Deus atua de forma marcante na TV brasileira, significa um investimento de meio bilhão de reais, ou mais precisamente R$ 575 milhões Só em 2016.


O fluxo de dinheiro da Universal para a Record aumentou 239,58% nos últimos dez anos, de acordo com Ricardo Feltrin. O jornalista apresenta o que seriam os gastos da Universal com horários de TV no decorrer dos anos, como segue:

2006 – R$ 240 milhões
2011 – R$ 480 milhões
2013 – R$ 500 milhões
2015 – R$ 535 milhões
2016 – R$ 575 milhões (estimativa) / Fonte: UOL

Trata-se de uma transferência de dinheiro tão vergonhosa, que é estranho que ela ainda não tenha chamado a atenção da Receita Federal. 

Trata-se de uma taxa que superou em muito a inflação do período, de 96,34%.

A Universal e demais igrejas, afinal, desfrutam de imunidade tributária (dinheiro que deixa de ir para os cofres públicos) e deveriam, por isso, ter um mínimo de transparência em suas contas.

Se o Brasil levasse a sério suas contas públicas e a laicidade do Estado, entre outras coisas, esse escárnio para com a sociedade não chegaria a tanto.

Embora haja muitas críticas a esse comércio de horários, não existe uma legislação (atualizada) e muito menos qualquer fiscalização que oriente essa relação.


Projetos que coíbem ou mesmo proíbem a venda e o comércio de faixas horárias entre terceiros e emissoras abertas estão em andamento no Congresso, porém nunca evoluem graças à união e boicote sistemáticos da chamada “bancada evangélica”.

Um herói invisível…

Eu até ia escrever sobre esse assunto, mas esse texto do “Diário do Centro do Mundo” ficou tão bom que resolvi compartilhar…


por : 

Herói invisível: Ruas

Luiz Carlos Ruas.  Viveu invisível, como milhões de brasileiros que são, como ele, ambulantes.
Virou notícia na morte, aos 54 anos, na noite de Natal, no metrô de São Paulo.
Eu ia dizer que só então o enxergaram, mas eu estaria mentindo.
Ele continuou invisível enquanto dois homens jovens o espancavam até a morte. A idade somada dos dois não chegava à dele.
Ruas estava invisível para os circunstantes, e assim os agressores puderam bater, e bater, e bater.
Em certo momento, como mostra um vídeo, os dois pareceram ter cansado de bater no ambulante estirado no chão.
Mas não. Eles voltaram e bateram mais. Luiz Carlos Ruas agonizou invisível.
Ninguém o socorreu. Onde os vigilantes do metrô? Onde pessoas solidárias?
A morte invisível é banal num país em que pobres não valem nada.
Entendo isso, embora lamente profundamente.
Mas a morte invisível não.
Ninguém viu Luiz Carlos Ruas em vida, mas sua morte tem que ser celebrada como o martírio de um heroi.
Ele morreu por fazer o que ninguém faz: defender alguém — outro invisível — que estava sendo atacado pelos dois homens que acabaram por assassiná-lo. Foi morto pelo ódio. Morreu por amor.
Luiz Carlos Ruas, o ambulante invisível, é aquele tipo de heroi que amanhã todos terão esquecido.
Ou hoje mesmo.
Mas em sua lápide certamente simples, tosca, remota, típica dos homens e mulheres invisíveis do Brasil, deveria estar escrito asssim.
LUIZ CARLOS RUAS (1962-2016)
FOI UM HEROI

A próxima ditadura não será militar

No Judiciário os brasileiros ainda depositam esperança”
Rômulo Bini Pereira, general de exército, em 15/12/2016
Um espectro ronda o Brasil – o fantasma de um regime totalitário e opressor ressuscitado. Não são poucas as analogias que ligam 1964 à 2016, criando a suspeita de que possamos estar revivendo tempos de golpe militar, mergulhando em períodos de repressão violenta, clandestinidade e de manobras abertamente antidemocráticas. Sintomas como a crescente polarização da sociedade; reivindicações públicas a favor de intervenção militar; o apoio crescente a figuras públicas controversas e contrárias aos direitos humanos e pautas progressistas; a criminalização dos movimentos sociais, a repressão nas ruas, o serviço de inteligência mapeando ativistas; e um clima de tensão e conspiração denso no ar, contribuem para o fortalecimento de muitas especulações.
A deposição de uma presidenta sem provas contundentes1, em uma clara manobra teatral sustentada por discursos em nome da ‘família’ e da ‘tradição’, coroaram o atual processo, e inflaram ainda mais os ânimos, dividindo o país.
Toda esta especulação sobre a possibilidade de um novo regime ditatorial no Brasil talvez esteja meio correta: caminhamos para a formalização de um estado de exceção. Mas a repressão, desta vez, talvez vista outros trajes, pois “a história só se repete enquanto farsa” – faz-se necessária uma reformulação palatável. Além do que, o que pouca gente sabe, é que o setor militar nunca foi tão bem tratado quanto na era PT2, confundindo ainda mais as possíveis motivações para uma ‘tomada do poder’.
É importante dizer que, quando o general Rômulo Bini Pereira diz que “se o clamor popular alcançar relevância, as Forças Armadas poderão ser chamadas a intervir”, ele pode ter duas intenções simultâneas: a primeira é criar um balão de ensaio para ver como ele ecoa, e se existe lastro popular em tal medida; a segunda, talvez seja disparar um alarme falso para desviar atenções. Citemos o fato de que, neste mesmo artigo, o general elogia a postura do judiciário brasileiro colocando-o como a única instituição com algum grau de confiabilidade entre a população, assim como era o exército em 1964.
O fato é que não existe qualquer clima para uma intervenção militar no Brasil. Isso não significa que não exista a demanda por uma nova forma de hegemonia que cerceie liberdades e lutas sociais, com vistas a estabilizar a situação nacional, fazendo-se necessária alguma forma de coerção. Neste momento da história, duas coisas se renovam com relação ao nosso passado recente: o método de desestabilização para tomada do poder; e a face dos que o ocuparão.
Com relação ao primeiro (o método) ficou clara a escolha pela fórmula desenvolvida pelo sociólogo norte-americano Gene Sharp3, já testada em várias ocasiões tais como a “Revolução Laranja”, na Ucrânia, em 2004; a Primavera Árabe de 2011; a desestabilização do atual governo venezuelano; entre outros, e, claramente, mobilizada para conduzir os ânimos populares no Brasil desde junho de 2013 até a consolidação do golpe através do impeachment em 2016. Este método, também conhecido por ‘golpe suave’, possui uma série de etapas de implementação, divergindo da atuação ‘napoleônica’ e abertamente belicosa de outras abordagens, como a de 64. O ‘golpe suave’ necessita engajar uma série de atores para sua correta condução: é preciso manipular a opinião pública, as pessoas enquanto massa de manobra e encontrar apoiadores institucionais e/ou econômicos de peso, o que não foi das tarefas mais difíceis em nosso contexto de poder centralizado e hegemonizado por setores retrógrados e em parte descontentes com a atuação governamental perante uma conjuntura de crise. O método funciona.
A outra questão é a ‘da cara’ a apresentar. Após a consumação do golpe palaciano e a consequente vacuidade de protagonismo no exercício do poder institucional no Brasil, assistimos a um embate aberto entre diversas forças que se antagonizam em busca da hegemonia no controle dos espólios. O congresso, herdeiro natural neste processo, encontra-se completamente descredibilizado perante a população, atolado em escândalos de corrupção e em toda sorte de contravenções; os movimentos sociais e de rua não foram capazes de construir nenhum tipo de unidade significativa para se apresentar enquanto uma alternativa popular; o atual presidente Michel Temer apresenta altíssimo nível de rejeição. Logo, ninguém melhor do que o poder judiciário para protagonizar essa nova etapa de controle e repressão no Brasil, valendo-se de sua atual credibilidade, em parte forjada pelos meios de comunicação e, por isso, contando com o apoio fundamental da grande mídia nacional, sem a qual tal protagonismo seria impraticável.
Esse estado de exceção tem sua máxima expressão na Operação Lava Jato, conduzida pelo juiz Sérgio Moro, alçado à posição de herói nacional, e que, inclusive, aparece bem colocado nas recentes pesquisas para os presidenciáveis em 2018, com 11% das intenções de voto, segundo Datafolha. A Operação Lava Jato, entre outras coisas, cumpriu o papel de aprofundar a total descredibilidade dos poderes políticos instituídos, apresentando centenas de denúncias de corrupção por parte de parlamentares eleitos, divulgando amplamente informações obtidas através de escutas e grampos (alguns deles ilegais, como o da então presidenta Dilma Roussef, que deveria ter sido autorizado pelo STF). A mais recente delação premiada da operação, do ex-diretor da Odebrecht Claudio Melo Filho, é mais um indício deste cenário: ela envolve 51 parlamentares, entre eles Michel Temer, todos sob denúncia de operações ilegais de recebimento de verba para campanhas políticas. O resumo da ópera: vivemos uma caça às bruxas motivada pela insatisfação legítima da população perante o pântano pestilento da corrupção no Brasil. Esta caça é protagonizada pelo judiciário, cada vez mais predisposto a fazer o que for preciso (inclusive passar por cima da lei) para ‘botar ordem na casa’. Mas a quem recorremos quando quem deveria fazer valer a lei a desrespeita?
Outro embate sintomático, foi a ofensiva pública de Renan Calheiros contra uma operação da Polícia Federal (Operação Métis) que prendeu quatro policiais do Senado sob a suspeita de atrapalharem a Operação Lava Jato com técnicas de contra inteligência, fazendo varredura nos imóveis de senadores com o intuito de livrá-los de eventuais escutas. Calheiros não hesitou em chamar o juiz que a autorizou, Vallisney de Souza, de ‘juizeco’, e de aprofundar a crise institucional entre os poderes. Na sequência, assistimos ao fatídico episódio aonde Calheiros decidiu desobedecer decisão do ministro Marco Aurélio Mello que o retirava da presidência do Senado pelo fato de um réu não poder ocupar a linha sucessória presidencial.
Por último, as “dez medidas contra a corrupção”, um projeto de lei de iniciativa popular encampado pelo MPF apresentado recentemente ao Congresso, causou furor e rejeição entre parlamentares das mais diversas posições, unificando as casas na recusa a uma matéria que, na prática, iria inflar ainda mais os poderes do judiciário e do MP, regulamentando eventuais ‘abusos de autoridade’ em prol da ‘moralização’ da vida pública.
Todos estes indícios nos levam a acreditar na existência de um golpe dentro do golpe; e que o que está em jogo nos atuais embates e antagonismos, é a real possibilidade uma ditadura do poder judiciário no Brasil que, dos 3 poderes, é o mais hermético e inacessível à população em geral; que não é eleito, mas legisla. E valendo-se de um sentimento popular legítimo contrário à impunidade, aqueles que sempre foram permissivos com todo tipo de contravenção quando vinda da elite, repentinamente, querem fazer valer suas prerrogativas ampliando seus poderes que já não são poucos, e de muita serventia seriam se devidamente utilizados com isonomia.
De fato é preciso que o judiciário funcione em nosso país, mas não que se transforme numa autocracia acima da lei, a exemplo do que tem feito e almejado.
Como nada disso seria possível sem o indispensável apoio da mídia, que dá papel de destaque para as operações e ações desses agentes da ‘promoção da moralidade’ no Brasil, arrisco dizer que, em um país de ditaduras, a próxima será jurídico-midiática. Burocracia, comunicação e desinformação aliadas para massacrar o povo.
É por isso que, mais do que nunca, precisamos apostar nas mobilizações comunitárias; na criação de canais e redes de comunicação popular e independentes; e na formação intelectual para dominar a gramática das instituições e resistir através da guerrilha institucional. Tempos difíceis virão; e será necessário entendê-los para superá-los.
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1 – Vou assumir este ponto como pacífico, pois é uma piada de mal gosto acreditar que Dilma Roussef cometeu algum crime de responsabilidade fiscal que não tenha sido cometido por todos os seus antecessores, e muitos outros chefes do executivo, não resultando, jamais, em qualquer comoção ou represália de nenhuma parte. Dilma foi julgada em um tribunal político travestido de democracia; tecnicizado pela retórica, valendo-se de um legítimo sentimento de reprovação popular perante o estado concreto das coisas e dos serviços públicos no país, em visível precarização e queda. O resto é teatro, e quem acreditou nele, não percebeu estar sendo tratado como plateia. Vide a primeira ação do governo ilegítimo após assumir: legalizar as ‘pedaladas fiscais’.
2 – Vide questões como: o aumento de 500% no orçamento do Ministério da Defesa entre 2003 e 2014, com sucessivos aumentos salariais; a posição do Brasil no ranking mundial de maiores orçamentos militares, estando em 11º; e a aprovação do decreto nº 6.703, nomeado “Estratégia Nacional de Defesa”, lançando um pacote de medidas que, em cinco anos, garantiria investimentos no setor equivalentes a 2,5% do PIB brasileiro, um aumento de 75%; entre outros.
3 – Sobre isto, ver aprofundamentos no artigo: http://www.sociologando.com.br/artigos/art_p004.php

Retrato de uma escritora rebelde



Alice Ruiz, pelos olhos do escritor Cristóvão Tezza

Irreverente e provocadora aos 70, Alice Ruiz fala de feminismo encarnado, contracultura, (anti-)casamento, relação com Leminski, experiência comunitária e solidão
Entrevista especial a Inês Castilho (parte 1/3) - Via OCA - Outras Palavras
Seu nome é desconhecido além de certos círculos da poesia e da música, mas ela é uma expoente na literatura e na transformação das relações de gênero no Brasil. A voz literária de Alice Ruiz, frequentemente expressa por haikais – versos breves de origem japonesa –, inaugura uma poética feminista ousada e libertária.
Diz-se poeta, não poetisa. E justifica: “A poesia é um estado de espírito. Bissex, e tendendo ligeiramente para o feminino. É o que existe de mulher em cada homem que faz dele um poeta. É o que está fora dos esquemas, os esquemas são masculinos. É o lado doce do homem que faz poesia. Já com a mulher é o lado masculino mais desenvolvido que transforma o estado poético em objeto poético. Em poesia.”
Na irreverência de seu primeiro livro, Navalhanaliga, publicado em 1980, essa aquariana de primeira hora já mostrava a que veio. Sua afirmação como poeta emergiu, justamente, da rejeição aos padrões de comportamento consagrados. Da recusa obstinada à cultura hegemônica e da criação de contracondutas. “Dizer não, não, não – até que você exista.” E dos nãos fazer um sim, como na imagem usada em Vou tirar você do dicionário, poema musicado por Itamar Assunção.

Durante 20 anos foi companheira do poeta Paulo Leminski (1944-1989), com quem teve três filhos: Miguel Ângelo Leminski, Áurea Alice Leminski e Estrela Ruiz Leminski. Conta que já dominava o discurso feminista quando percebeu que lhe faltava a prática. Com dois filhos pequenos, era mãe e dona de casa em tempo integral até ver sua filha reproduzir, brincando, o que ela fazia: lavar, varrer, passar. “Foi quando pensei: mas que exemplo estou dando para a minha filha? E aí comecei a escrever…”
Alma de papoula
Lágrimas
Para as cebolas
Dez dedos de fada
Caralho
De novo cheirando a alho
Influenciada pelo simbolismo, pela poesia concreta, pelo tropicalismo e pela contracultura, Alice se distingue “não pela escrita feminina, mas pela poética feminista. Em seus textos não há espaço para uma mulher chorosa e lastimosa: bem humorados, inteligentes e cortantes, são versos políticos que desvelam novas possibilidades para a subjetivação feminina”, observa Carô Murgel, pós doutoranda em História Cultural pelo IFCH/Unicamp, pesquisadora da obra da poeta e haikaista curitibana.
Alice conta que aprendeu a escrever traduzindo, tanto que esta é a sua primeira lição nas oficinas de haikai que ministra, desde 1990, em vários estados brasileiros. Traduziu poetas japonesas, reunidas no volume Dez haikais, e reverenciou o mestre Matsuo Bashô (1644-1694) com estes versos:
Francisco conseguia
entender
o que a ave dizia
Bashô enxergava
a lágrima
no olho do peixe
Sua obra é grande, diversa e premiada. Tem 21 livros publicados, entre poesia, traduções e uma história infantil. Conquistou o prêmio Jabuti de Poesia de 1989 com o livro Vice Versos e o Jabuti de Poesia de 2009 com Dois em Um, entre outros prêmios.

Com Caio Fernando Abreu, recebendo o Jabuti de Poesia

Compõe letras de música desde os 26 anos e tem canções gravadas por parceiros e intérpretes – músicos como Arnaldo Antunes, José Miguel Wisnick, Itamar Assumpção. Em Poesia pra tocar no rádio, de 1999, reúne as letras e poemas musicados de suas parcerias. Em 2005 lançou seu primeiro CD, Paralelas, em parceria com Alzira Espíndola, com a participação de Zélia Duncan e Arnaldo Antunes. A canção “Para Elas” fala do amor das duas a suas filhas.
Para Elas
Enchemos a vida de filhos
Que nos enchem a vida
Um me enche de lembranças
Que me enchem de lágrimas
Outro me enche de alegrias
Que enchem minhas noites de dias
Outro me enche de esperanças e receios
Enquanto me incham os seios
Na entrevista a seguir, a primeira de três partes em que a artista, descendente de alemães e espanhóis, fala de sua vida e obra, Alice conta sua trajetória – da adolescente rebelde, que largou os estudos para ser arrimo de família, à artista consagrada, mulher, mãe e avó. Uma trajetória marcada pela aguda consciência das desigualdades de gênero e de grande necessidade de contato com a natureza.
Aqui jaz Alice Ruiz
viver ao ar livre
com o mínimo indispensável
morrer com dúvidas
Você foi uma mulher muito bonita…
Fui, mas não por mérito próprio (risos), dei sorte com a genética. Era bonita não por correr atrás da beleza, é que minha mãe era bonita, meu pai era bonito… Eu poderia ser mais bonita, porque meu pai tinha olhos verdes (risos).
Tenho a cara que tenho. Nunca me esforcei… iiih, estou gorda, iiih, os peitos caíram, iiih, meu pescoço está com uma ruga nova… nada disso. E sinceramente conheço muita mulher da nossa idade que ficou na correria contra o prejuízo e o prejuízo foi maior, porque perderam a expressão, se esvaziaram… Aderi de braços abertos à contracultura, que era anticonsumo, antimaquiagem, antijóias… Penduricalhos sim, mas antitudo o que está envolvido na coisa do consumo.
Você interrompeu os estudos cedo… É autodidata?
Sou autodidata num monte de coisas, minha faculdade é a vida. Terminei o ginásio e tive que parar de estudar porque precisava trabalhar, ser arrimo de família. Tinha dois empregos, e fiz o supletivo, só tinha que prestar exame. Cursinho fui fazer com o Miguel e a Áurea já nascidos. E aí me dei conta de que o único jeito de passar no vestibular era casando com a apostila… E eu não queria casar, nunca quis casar. (risos)
E como foi que se casou?
Eu achava o casamento um horror. Olhava a vida das mulheres da minha família e não entendia aquilo de dar os parabéns pra moça e os pêsames pro rapaz, quando ficavam noivos – não sei se ainda fazem isso. Ele ia ficar enforcado e ela ia enfim ser feliz – quando na verdade ele teria de graça sexo, serviços domésticos e administração da casa (risos) e ela, por sua vez, abriria mão da liberdade. Via isso nitidamente na família. Os homens trabalhavam fora, as mulheres trabalhavam em casa. À noite e nos fins de semana os homens relaxavam e as mulheres continuavam trabalhando, até mais, porque tinham de levar cerveja pra eles, a casa tinha que estar mais limpa, a comida tinha de ser especial… Eu olhava aquelas formigas desesperadas e eles… A mulher tinha de abrir mão do seu sobrenome, era obrigatório à época. Eu não queria. Mas aí você é rebelde, ovelha negra, encrenqueira… aquele tipo fora dos eixos na família. E é criticada, talvez menos amada por isso. Eu era o patinho feio, ocupava esse lugar sem ter consciência de que estava certa. Só me conscientizei lá pelos 18 anos.
O que fez com que percebesse?
Na verdade, quem mudou minha vida foi Memórias de uma moça bem comportada, da Simone de Beauvoir. Era a vivência dela na França, mas eu olhava e dizia, ah, então não sou esquisita, tem mais gente pensando como eu. E aí peguei O Segundo Sexo e nunca mais conseguiram me enganar. (risos)
E o Paulo [Leminski], como é que entra nessa história?
O Paulo conseguiu me enganar. (risos) É, o amor faz isso com a gente. Quando nos encontramos foi casamento à primeira vista, literalmente, passamos a viver juntos no dia em que a gente se conheceu. Foi um grande encontro. As coisas que eu pensava e que ele pensava casavam, era tudo lindo, maravilhoso, almas gêmeas – até que a realidade chamada filhos botou o discurso na prática – e aí a relação começou a capengar. Começou a capengar porque ele achava que não tinha prática de lidar com criança – como se eu tivesse, né? (risos)
O tal do instinto…
Exato. Saiu de dentro de você, tem mil argumentos biológicos que mandam os culturais pro lixo. E aí meio que não tinha mais volta. Todas as outras coisas continuavam ótimas, só que começou a se infiltrar no cotidiano a arcaica divisão de papeis. Ou seja, ele me enganou – mas acho que também se enganou. Que se achava apto, até que, diante da dura realidade, vimos que não. Mas é lógico que ele fez corpo mole, podia ter se esforçado.
E eu me vinguei. Ele vinha com essa história de que tinha medo de pegar a criança até os seis meses porque a coluna era muito molinha, porque a moleira pulsava, medo de prejudicar. Então até pelo menos os seis meses o filho era só meu. Mas no parto da Estrela [filha mais nova] eu botei ele dentro do quarto sem que se desse conta, o parto foi de cócoras, e quando ele viu ela estava nascendo.
Se apavorou?
O Paulo, que normalmente não conseguia parar de falar, ficou dois dias em silêncio. Depois me falou que saiu do hospital tendo vontade de se ajoelhar diante de cada mulher que via. Ele se conscientizou do que era parir. E o bacana é que nós tivemos a Estrela juntos. Foi um trabalho que o Paulo me ajudou a fazer – segurou meus ombros pra eu não me levantar da cadeira, e assim que o cordão parou de pulsar o médico deu para o Paulo cortar e passou a Estrela do meu colo para o colo dele. Ele, que não pegava a criança antes dos seis meses, pegou 15 minutos depois que saiu de mim. E aí mudou completamente a relação dele com isso de ser pai. Não chegou a trocar fralda mas descobriu, e era um barato, porque volta e meia a Estrela, nenezinha, fazia um tatibitati qualquer que ele entendia como a tentativa de comunicação verbal e ele vinha, “preciso te contar uma coisa, a criança, quando vai adquirir a linguagem, ela junta…” Eu ficava olhando e dizia “humhum, nunca tinha notado”… (risos) Tudo o que ele descobria era uma descoberta universal, quando na verdade qualquer mãe está besta de saber como a criança começa a adquirir a linguagem.
Então acho que essa sacanagem foi o maior presente que dei pra ele na vida, e pra Estrela também, porque apesar dela ter 8 anos e a Áurea 18 quando ele morreu, ela de certa forma teve tanto pai quanto, só que de outro jeito.
Você disse que não queria se casar, mas aí se apaixonou.
Pois é, aí eu queria viver com aquela pessoa. E fiquei grávida, então pinta uma responsabilidade, você não decide mais só por si. A gente achou que era melhor para a criança se vivesse junto – e por que não, se a gente já vivia junto? Só que na hora que pinta a criança pintam outras expectativas dentro da relação. Quando a mulher cuida da criança sozinha, o homem, além de estar sendo egoísta, fica com ciúme! Quer dizer, é um duplo problema: ela fica magoada por estar sozinha e ele fica magoado por se sentir abandonado… Ele se sente traído e ela se sente traída. É a hora da verdade, em que muitos casamentos acabam.
Queriam aquela pessoa e não o pacote. É uma imbecilidade, porque a gente só se apaixona – vou ser cínica, agora — porque a espécie decidiu continuar, então pinta um encontro químico entre duas pessoas, um encontro hormonal aceito pela espécie. E aí pronto, você fica junto. Mas então, quando a espécie aparece, muitas vezes eles não seguram a onda. Muita gente vai dizer que com isso se está negando o amor homossexual. Bem, não estou negando, sei lá o que move o amor homossexual, mas do hetero eu tenho certeza. Você diz que é um encontro de almas, tudo bem, mas é o hormônio que decide.
Biologia versus cultura, como fica essa equação?
Essa equação é muito difícil. Acho que a discriminação da mulher é enormemente cultural, mas com uma base biológica – infelizmente. Por um lado a capacidade de dar à luz, e por outro o fato de ter menores proporções. As mulheres costumam ser menores e ter menos força muscular. Claro que nem sempre, aliás eu conheci algumas mulheres mais fortes que seus maridos, mas, engraçado, eram as mais submissas, de alguma forma compensavam – é louco isso. As decisões domésticas têm de ser dele porque senão não vai ficar de pau duro… Sim, porque a sexualidade masculina depende muito da admiração da mulher.
E o vice-versa, não?
Sim, mas admiração por coisas diferentes. O homem quer ser admirado por seus feitos, seu pensamento, sua oratória; e a mulher quer ser admirada pela sua beleza, esse é o padrão. Por que as mulheres ficam enlouquecidas atrás da beleza? Porque é na aparência que está centrada a coisa, ou pelo menos é nisso que o sistema quer que a gente acredite.
Você fala em criar contracomportamentos, novos modos de viver como luta contra o sistema.
Foi isso que a contracultura fez. Ela foi cooptada mais tarde, mas no começo a gente tentou reinventar tudo. Partiu do anticonsumo, e com isso veio uma reinvenção dos papeis sociais, tanto nas relações homem-mulher como nas relações de amizade, nas relações familiares. De repente a nossa geração era a nossa família, foi uma escolha que a gente fez, fazíamos comunidades e juntávamos um bando de gente, ninguém tinha nascido nas mesmas condições e estávamos todos vivendo ali como irmãos, primos…
Você viveu em comunidade?
Logo que eu e o Paulo passamos a viver juntos, em 68, nos primeiros anos a nossa casa abrigava muitas pessoas. Éramos duas mulheres, eu e a Neiva, e mais um bando de homens. A Neiva foi a primeira mulher do Paulo, e então vivia com o Ivan. E tinha muita gente abrigada, que dormia lá com a gente. Variavam, mas era tudo bem comunitário. Quer dizer, essa coisa de comunitário é complicado, porque sempre tem alguém que segura mais a onda. Adivinha quem? O Paulo na grana e eu na casa, e na grana também. Salvei muita gente com sopão no fim da noite, porque os homens estavam todos desmaiando pelos cantos de bêbados ou outras coisas, e se continuasse daquele jeito iam passar mal. Então eu acabava segurando a onda também no fogão, e trabalhava durante o dia.
Fale um pouco da sua vida profissional.
Por mais de 20 anos paguei as contas com publicidade. Quando o Paulo morreu – acho que ali vi o tamanho da vida –, me dei conta de que não podia mais vender meu tempo, e passei a ser freelancer. Louca, ficar sozinha com duas filhas, uma com 18 e outra com 8, e decidir largar o emprego. Mas pra mim foi muito claro. E também já estavam me chamando pra dar oficina de haikai, dar palestra, e eu tinha de recusar por causa do trabalho como contratada na agência.
Então falei não, não mais, tem um trabalho a ser feito que me faz feliz, me significa, que é poesia, letra de música, compartilhar isso com as pessoas, não vou perder nem mais um minuto vendendo coisas. E efetivamente passei a ser freelancer, só interrompi nos seis meses em que fui secretária municipal de cultura. (Rafael Grecca logo me demitiu pra colocar uma pessoa mais de acordo com ele, no que fez muito bem.) Quando saí fiquei só dando palestra, oficina e fazendo letra de música, que pra minha surpresa começou a dar dinheiro, porque poesia não dava.
Como começou a fazer poesia?
Quando eu era garota, 11, 12 anos, foi o boom do rock, era o que nos expressava. Eu traduzia as músicas e o que não sabia inventava, ou seja, estava treinando a letrista e não sabia. Ao mesmo tempo eu já escrevia umas coisas sobre a natureza – é onde vou sempre repor energia e ela acaba me inspirando, preciso dessa energia telúrica. Eram pequenas observações, e só quando conheci o haikai vi a semelhança com essa forma tradicional do outro lado do mundo. Comecei então a estudar o haikai, o Zen, e parti pra tradução, que é a melhor maneira de se aprofundar numa forma poética.
Por conta própria?
Por conta própria. Tinha as traduções que o [Horace] Blyth fez para o inglês, mas mantendo o japonês, ele mesmo diz que fez uma tradução literal, não uma tradução poética, e quando ele falou isso comecei a prestar atenção no Romaji, que é a fonética do Haikai. Então comecei a ver que não tinha rimas, mas todo um jogo de sonoridades internas, aliterações e tal, e aí fui atrás de um dicionário japonês-inglês pra traduzir isso. É uma experiência adorável, porque outra escrita é um outro jeito de pensar, de se relacionar com a vida, e esse dicionário foi durante muitos anos uma paixão! Mas rendeu pouco, porque só publiquei um livro com 25 haikais das mulheres, das japonesas, e outrocom 20 haikais do Issa, por quem sou apaixonada. Isso em meados de 1980. Mais uma vez a tradução. E quando dou oficina, tanto de letra de música quanto de haikai, depois da parte teórica o primeiro exercício é traduzir.
Você pratica meditação, tem uma prática zen?
Agora não, mas pratiquei, e faz um bem danado. Mas não sou muito de ficar atrás de guru. Foi através do haikai, com 20 e poucos anos, quando comecei a estudar e vi que uma das correntes pode ser uma prática zen. Comecei a ler sobre o zen e me surpreendi ao ver o quanto me identificava com aquilo, a consciência de fazer parte do todo, ser menos eu. Falo da ilusão de um eu substancial, independente daquilo que acontece à sua volta.
O zen me ajudou a achar uma felicidade interior que independe de eu estar vivendo uma história de amor ou estar ganhando dinheiro, ou reconhecimento. Mesmo nos momentos mais difíceis, das grandes perdas. Aprendi a ver a morte das pessoas que amava não como uma coisa que acontecia comigo, mas que acontecia com elas. Quando você tem um eu inconsciente de fazer parte do todo, tende a ter muita autopiedade, cada coisa que acontece é comigo que aconteceu. E a maior parte das coisas, inclusive o mau humor do outro, raramente é com você. Ter um projeto de vida, de autoexpressão em qualquer coisa, não precisa ser na arte, ter um projeto seu faz com que o que independe de você fique nesse lugar, de que independe de você. Não sei se me explico…
Acho que sim, pelo menos eu estou entendendo.
Ótimo, espero que nossos leitores também. Porque é uma coisa tão sutil isso, tao difícil de colocar em palavras, como aliás tudo no zen…
Solidão apavora?
Entendo que a quebra da solidão não é a companhia, mas a troca. E nas palestras e oficinas há muita troca, porque se as pessoas foram lá para aprender haikai ou letra de música já temos afinidades a priori. Meras presenças não preenchem solidão nenhuma. A palavra solidão foi semantizada de forma muito negativa, mas na verdade se você não se satisfaz com a sua companhia, não tem grande coisa pra oferecer a ninguém. Então é fértil, volto de viagem e me centro de novo, me alimento desse estar comigo, só comigo.
No começo foi difícil, sou obrigada a confessar. Primeiro éramos eu e o Paulo, depois veio o Miguel, veio a Áurea, durante dez anos éramos quatro, depois o Miguel morreu, tivemos a Estrela, voltamos a ser quatro, aí o Paulo morreu, éramos três, daí sai de perto da Áurea com a Estrela, éramos duas e por fim, há 14 anos, estou só.
Amo a solidão, ela me faz crescer, me relacionar melhor com as pessoas, não fico atirando a minha carência em cima dos outros. Pelo contrário, sei lidar com ela, e procuro dar o meu melhor nas relações todas. E acaba que algumas pessoas entendem e outras não (risos).
Sobre a coisa amorosa, adoro aquilo que o Caetano falou da amizade e do amor, “e quem há de negar que esta lhe é superior”? Porque na amizade você aceita o outro como ele é, e no amor isso é muito difícil, muito raro, no amor sempre tem um euzão que se coloca, que quer ser amado. Aliás, quem falou isso acho que foi o [Jean-Paul] Sartre, no O Ser e o Nada, que o amor não é um sentimento autêntico, porque não é o outro que você ama, você ama a imagem que o outro tem de você. O outro te vê de um determinado jeito que te interessa ser, e aí você quer isso no outro, mas é você que você quer no outro. Estou falando do amor romântico, claro. Então eu prefiro amar sem expectativas, e o nome disso é amizade.
E o envelhecimento, a morte?
Acho que o que nos dá juventude é a coragem de começar alguma coisa, é estar envolvido com o coletivo, com o que realmente importa na vida… E aí eu agradeço ao Zen. Quando você desiste de tentar é porque envelheceu, não importa a idade que tenha. Não sei a idade que tenho. Cronologicamente, 70 anos. Mas a minha capacidade lúdica, de me divertir com as coisas mais banais, principalmente trocadilhos, adoro piada na linguagem, ou com crianças, é um negócio assim de criança. Sou uma menininha.
Algumas pessoas falam, mas morrer sozinha!.. Porra, independentemente de qualquer coisa, você vai morrer sozinha. O morrer é solitário. E o viver é solitário, também. A tua experiência de vida é só tua.
Sou a favor da eutanásia, acho que a gente devia ter esse direito.
Como você vive a espiritualidade?
Sou uma espécie de ateia que ama o sagrado nas coisas. Visto branco às sextas-feiras em homenagem a Oxalá, mas não sou filha dele. Sou filha de Oxossi, paciência de caçador. Paciência eu tenho, e amo a natureza.
Quando era jovenzinha levei um tapa da minha tia, em público, porque falei que queria estudar todas as religiões. Aquele tabefe me deu mais certeza de que devia fazer isso, e efetivamente fiz. Estudei religiões comparadas, islamismo, judaísmo, as africanas, hinduísmo, budismo. Tenho uma queda pelo zen porque não é uma religião, mas uma atitude de vida; e pelo candomblé, porque os orixás representam energias da natureza e energias nossas. A palavra religião vem de religar, você se religar com o que há de bom, de belo. E as duas são as que me ajudam a colocar o meu melhor pra fora – e pra dentro.
Mas tenho muita bronca dessas instituições, porque a maior parte das religiões oprime a mulher. O sistema gosta delas porque colaboram com a normatização e o controle da mulher. Só que essas duas não tanto. A gente aqui tem a monja Coen, mas normalmente é o mestre zen e não a mestre zen. No candomblé a maioria são mães de santo, mas o argumento pra isso não me agrada: a mulher incorpora os orixás porque seria mais dominável, possuível que o homem. Acho que há controvérsias… Mas de qualquer forma se encontram sacerdotisas, a chefe do terreiro. São os dois contatos espirituais que têm melhor espaço pra mulher.
Você se considera bruxa? O que significa ser bruxa?
Acho que sou muito bruxa. Ser bruxa é prestar atenção no movimento natural das coisas e tentar agir dentro desse movimento. É saber olhar, enxergar o movimento natural das coisas e agir concorde. Acho isso uma tremenda de uma bruxaria, porque a maior parte das pessoas não faz isso. Essa tar de realidade, toda ela está agindo contra a natureza, contra a saúde, contra as vibrações positivas, destruindo… Se você não aceita isso, está na contramão.
Você observa as estrelas pela astrologia, não é? Daí o nome da sua filha…
Daí o nome da minha filha. E eu olho as estrelas.
Como é ser mãe de filhas?
Ter duas mulheres é uma tremenda responsabilidade. Quando uma filha faz 21 anos, eu saio de casa. Porque quando eu era jovenzinha e tive de parar de estudar pra trabalhar fiquei com muita autopiedade, foi muito doloroso abandonar os estudos. Eu dizia pô, que sacanagem a vida fez comigo. Mas depois entendi que tinha sido uma coisa maravilhosa porque fiquei independente. Quando conheci o Paulo não dependia dele pra nada, era só porque sim. Nós dois trabalhávamos fora, nós dois colocávamos dinheiro em casa.
Falei isso pras minhas filhas. Não queria que dependessem, ou precisassem depender de ninguém. Então eu as criei avisando, desde a adolescência, que a melhor coisa que tinha me acontecido era ser uma mulher independente, e era isso que eu esperava delas. Por isso quando fizessem 21 anos eu sairia de casa. Claro que foi doloroso na hora, mas hoje as duas me agradecem. É o famoso o que arde cura.
E como é ser avó pra você?
Sou avó da Lorena com 12 anos, do Leon que tem 8 e o Vinicius, de 15 anos, que é filho do marido da Estrela e foi morar muito pequeno com eles, é meu neto também. Então, mais uma coisa que não fui dentro dos padrões. Sempre discuto com essas pessoas que acham ser avó uma delícia porque você pode estragar seus netos. Pô, como é que você vai estragar quem você ama? Na relação comigo eu educo, sim. Mostro o que gosto e o que não gosto. Minha neta por exemplo, acho que com uns quatro anos falou num tom autoritário comigo e eu falei ô menininha, deixa eu falar uma coisa pra você conhecer melhor sua avó, ninguém manda em mim, pessoa alguma no universo, entendeu? (risos) O pai e a mãe ficaram olhando, porque não se fala assim com uma criancinha. Mas se fala sim, eles entendem muito bem, sempre tratei criança como uma pessoa que está aprendendo, não um débil mental.
Li um texto que me comoveu. logo depois que me tornei avó. Os netos e netas têm com os avôs e avós um tipo de relação especial porque é a única que não está permeada pela sexualidade. Os avós não são mais, e a criança ainda não é conduzida pelos hormônios, então esse amor é mágico. Não que você queira ir pra cama com todas as pessoas, mas há uma tensão hormonal clara com os amigos. Mas não entre netos, netas, avôs e avós. Não é bonito? A gente se olha de um lugar que tem muita pureza. Não estou dizendo que a sexualidade seja suja, não é isso. Mas os hormônios levam a intenções, e ali não há intenção, é um puro estar fluindo junto.
Outra coisa é que a gente não está a fim de ser avó o tempo todo. Tem isso, também.
Você faz as cartas astrológicas de cada um?
Claro, faço os mapas astrais de todos. Preciso saber com quem estou lidando! (risos)

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