Hospital joga fora sangue de estudante gay

Hospital joga sangue doado por estudante gay no lixo sob a justificativa de que sangue homossexual é 'ruim'

doação sangue estudante gay
Médica disse que sangue de estudante não serve porque ele é gay (Reprodução)
“Você não vai querer sangue ruim no seu corpo, né? Não vai querer sangue de gente promíscua?”
“Você está insinuando que eu sou promíscuo?”
“Não.”
“Você está insinuando que os gays são promíscuos?”
“Veja bem, o que eu quis dizer é que você é uma exceção, né. É difícil ver gays em relacionamentos estáveis como o que você está relatando para mim.”
Esse foi o diálogo que Leonardo Uller teve com a médica Mirianceli Mendonça (CRM 55924-SP) ao tentar doar seu sangue no Hospital 9 de Julho, em São Paulo. O estudante de jornalismo de 19 anos respondeu ao questionário do hospital antes da doação e confirmou que era homossexual, mas que mantinha um relacionamento fixo há mais de 12 meses e que sempre usou preservativo. Ainda assim, a médica afirmou que não poderia doar seu sangue porque era considerado “de risco”.
Leonardo manteve a discussão mesmo após sofrer assédio moral e conseguiu realizar a doação. Entretanto, a pior notícia veio depois: seu sangue seria descartado. Uma colega próxima do estudante conversou com os diretores do Hospital 9 de Julho, que informou: “O hospital, que tem obrigação em preservar a saúde e vida dos pacientes, nunca será condenado por se tratar de pessoas de alto risco e contágio”. “A bolsa do sangue doado é descartada”, contou em uma conversa informal via Facebook.
O jovem relatou que já doou sangue outras vezes no Hospital São Paulo, e que nessa instituição nunca perguntaram sobre a sua sexualidade. “A pergunta é apenas quantos ‘parceiros’ nos últimos 12 meses, sem especificar o sexo”, disse Leonardo. Porém, desta vez precisava ajudar a repor as doações do Hospital 9 de Julho, onde seu tio está internado.
“Hoje eu entrei em contato com a Defensoria Pública e, por conta da falta de testemunhas, eles falaram que talvez a melhor opção seja apenas um ofício para notificar o hospital”, contou Leonardo. Mesmo assim, ele mantém a intenção de processar a instituição e para isso já conta com auxílio de um advogado. “A maior prova que eu tenho é o próprio sistema do hospital e a minha ficha, onde tem o questionamento se ‘tive relações com outro homem’”.
Em um relatório enviado à instituição, o jovem questiona: “Sobram tantos doadores no Hospital 9 de Julho para jogar o meu pelo ralo?”. Ele também enviou a Portaria Nº 1353 de 13/06/2011 do Ministério da Saúde, cujo artigo 1º § 5º define: “A orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não constituir risco em si própria”.
Apesar de contar com o apoio de grupos estudantis, Leonardo espera agora a manifestação de lideranças LGBT sobre o assunto. “Mandei uma mensagem pro [deputado federal] Jean Wyllys, mas até agora nada”, disse ele, que considera o fato homofobia.

'Quantos morreram? Tantos quanto foram necessários', diz coronel sobre regime militar de 64

Foi só quando o carro embicou no pátio do Arquivo Nacional, no Centro do Rio, e o corre-corre da imprensa se amontoando ao seu redor começou – "Chegou!" – que as dúvidas sobre se o coronel reformado Paulo Malhães de fato apareceria se dissiparam.

Aos 76 anos, Malhães foi carregado do carro para a cadeira de rodas que havia solicitado para comparecer à audiência pública da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cercado de fotógrafos e cinegrafistas. Acompanhado da esposa, vestindo um terno bege e um óculos escuros de aro dourado – que fez um repórter ao meu lado comentar que parecia o ex-ditador líbio Muanmar Khadafi.

Outra repórter arriscou puxar uma entrevista – "Você não se arrepende?" – gritou, mas a cadeira de rodas era empurrada às pressas para a sala de depoimento, que seria fechada à imprensa. Malhães nem olhou para trás.

Desde que a CNV foi criada, em maio de 2012, apenas quatro agentes da ditadura haviam aparecido nas convocações para depor em audiência pública, e apenas dois haviam confirmado a prática, ou a existência, de tortura.

Malhães se tornou o quinto a depor e o primeiro a admitir a participação em tantos crimes.
Em depoimento que durou mais de duas horas, ele confirmou que torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos na ditadura militar.

Casa da Morte

Na audiência pública, a CNV apresentou o que se sabe sobre a Casa da Morte de Petrópolis, um centro clandestino mantido pelo regime militar no início da década de 1970.

Malhães era um dos agentes ativos no centro de tortura – cujo nome vem da fama de que ninguém saía dali vivo. A única sobrevivente é Inês Etienne Romeu, presa e torturada por seis meses em 1971.

Foi graças à sua memória e perseverança que a existência da casa veio à tona, em 1981. Ela tem graves sequelas neurológicas desde que foi agredida em casa em 2003, em um crime que nunca se esclareceu. Foi aplaudida como uma heroína na audiência na parte da manhã.

De tarde o público se dissipara. O coronel concordara em depor, desde que fosse a portas fechadas. Mas logo no início da sessão, surpreendeu a todos mudando de ideia e admitindo a entrada da imprensa. A primeira frase que ouvi ao entrar foi: "Como faço com tudo na vida, eu dei o melhor de mim naquela função."

Ele tirara os óculos escuros e agora parecia apenas um senhor apagado de 76 anos, os cabelos escovados para trás, a barba grisalha, os ombros tronchos meio caídos para a frente.

A CNV apostara na vinda de Malhães porque nas últimas semanas ele mostrara uma súbita abertura a entrevistas.

Ele fez revelações com riqueza de detalhes aos jornais O Globo e O Diae à Comissão Estadual da Verdade no Rio. Disse que foi ele quem deu uma solução final ao corpo do deputado Rubens Paiva, desenterrando-o de uma praia do Rio para lançá-lo no mar, ou em um rio – ele deixava em aberto.

Mas no depoimento à CNV, desmentiu a "verdade" que recém-revelara sobre Rubens Paiva – e confirmou muitas outras.

Malhães não quis dar nomes a seus comparsas nem números a suas vítimas.
Mas disse ter torturado "uma quantidade razoável" de pessoas, ter matado “alguns” e confirmou ter mutilado corpos para impedir sua identificação caso fossem encontrados.

'Eu cumpri meu dever. Não me arrependo', disse Malhães à Comissão da Verdade

"Naquela época não existia DNA. Quais são as partes que podem identificar um corpo? Arcada dentária e digitais", afirmou, explicando que portanto os dentes eram quebrados e o topo dos dedos, cortados.

"Eu cumpri o meu dever. Não me arrependo", disse ele.

Malhães agora ocupava a cadeira do interrogado, microfones dispostos à sua frente, e do outro lado da mesa estavam os membros da CNV, com José Carlos Dias e Rosa Cardoso conduzindo as perguntas. Sua esposa estava na cabeceira da mesa, e sem mexer e cabeça alternava entre o marido e seus interrogadores.

Eles lhe mostraram fotos de pessoas que, acredita-se, foram assassinados ou desapareceram depois de passar pela Casa da Morte. O coronel alegou não reconhecer as fotos. Disse que nenhuma daquelas pessoas passou por suas mãos.

"Essas pessoas que vocês estão citando eram guerrilheiros, eram luta armada, não eram pessoas normais. Não foram presos porque jogavam bolinha de gude ou soltavam pipa."

Argumentou que hoje as pessoas não conseguem entender quais eram os problemas enfrentados, e que a verdade precisa ser "informada".

"Quantos morreram? Tantos quanto foram necessários."

'Não sou sentimental'

Dias e Cardoso faziam uma pergunta atrás da outra, muitas vezes cortando suas respostas pela metade. Malhães esboçou alguma impaciência mas permaneceu calmo, sempre tratando-nos por "senhores".

Guerrilheiras mulheres, ele disse que via como se fossem homens. Mas "eu tinha verdadeiro pavor de interrogar as mulheres e, vamos dizer, gays, para não usar a palavra que se usava naquele tempo."

Isso porque mulheres ou homossexuais, segundo o coronel, preferiam morrer a revelar os nomes dos amantes ou maridos. Já os homens falariam depois de duas ou três horas. "Você 'ganhar' uma mulher é uma coisa, assim, de outro mundo", disse, sem precisar a que método de interrogatório se referia.

E Rubens Paiva? Perguntado novamente sobre a operação para encontrar a cova do deputado e sumir com seu corpo, notícia que teve ampla repercussão na semana passada, Malhães agora disse não ter sido ele quem executou a missão, embora tenha recebido a tarefa inicialmente.

"Eu só disse que fui eu porque eu acho uma história muito triste quando a família passa 38 anos querendo saber o paradeiro. Eu não sou sentimental, não. Mas tenho as minhas crises."

A versão a jornalistas teria sido dada "para pôr um ponto final na história".

Mas no depoimento ficou claro o incômodo de Malhães com a repercussão das matérias do Globo e do Dia, ambas baseadas em longas entrevistas que deu em mais de um dia a repórteres dos dois veículos.

"O defeito do jornalista é que eles são ávidos por novidades. Se ligassem os fatos não publicariam algo errado", criticou, dizendo ter sido vítima de reportagens "fundamentalmente maliciosas", disse.

Por isso, estaria agora procurando falar em forma de parábolas – "como fazia Cristo" – para que cada um pudesse interpretar suas palavras da sua forma.

Culpa

Ao fim do depoimento, depois de confirmar seus crimes, Malhães foi empurrado na cadeira de rodas de volta para o carro, de volta para a rua, de volta para casa.

Mas deixou entrever o calvário pelo qual sua família começa a passar após ter começado a tornar públicos seus crimes.

Quando Dias insistiu para que falasse sobre os corpos que descaracterizava, ele se negou a informar quem ele havia "feito". Disse não ter medo de vingança, mas de sanções aos seus filhos.

"Seus filhos não têm culpa do pai que têm", disse Dias.

"É. Também concordo. Mas isso não é verdade. Eu tenho cinco filhos e oito netos. Com essas reportagens que saíram, eles estão sofrendo sanções".

"Mas sofreriam mais se soubessem – 'meu pai cortou os dedos e cortou o pescoço de fulano de tal’, ou então de uma pessoa cujo nome eles não sabem? Que diferença faz?", insistiu Dias.

"Muita. Essa pessoa também têm família."

Ao fim da sessão, Dias ressaltou a importância do depoimento, principalmente por Malhães ter sido um homem de alto escalão no regime militar.

"Acima dele, todos os degraus naturalmente tinham conhecimento da tortura. Era uma política de estado, usada para combater os que se opunham ao regime."

Segundo Dias, poucas vezes o Brasil teve uma confissão como esta, com um torturador não apenas admitindo mas também justificando a prática de torturar aqueles que considerava o inimigo.

"Mas eu não diria que ele foi corajoso. Acho até que ele foi um exibicionista, mostrando todo esse caráter mórbido que está presente no caráter dele."


Dez razões para não ter saudades da ditadura




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Veja fotos históricas do golpe de 1964 e da ditadura militar (1964-1985)15 fotos

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O presidente Emílio Garrastazu Médici (Arena) inaugura placa de bronze marcando o início oficial da construção da rodovia Transamazônica, em Altamira, Pará, em 1970. O país experimentou um momento de desenvolvimento econômico que ficou conhecido como "o milagre brasileiro", ocorrido juntamente com a dependência de capital estrangeiro e aumento das desigualdades sociais Leia mais Folha Imagem
José Nascimento/Folhapress

1. Tortura e ausência de direitos humanos

As torturas e assassinatos foram a marca mais violenta do período da ditadura. Pensar em direitos humanos era apenas um sonho. Havia até um manual de como os militares deveriam  torturar para extrair confissões, com práticas como choques, afogamentos e sufocamentos.
Os direitos humanos não prosperavam, já que tudo ocorria nos porões das unidades do Exército.
"As restrições às liberdades e à participação política reduziram a capacidade cidadã de atuar na esfera pública e empobreceram a circulação de ideias no país", diz o diretor-executivo da Anistia Internacional Brasil, Atila Roque. 
Sem os direitos humanos, as torturas contra os opositores ao regime prosperaram. Até hoje a Comissão Nacional de Verdade busca dados e números exatos de vítimas do regime. 
"Os agentes da ditadura perpetraram crimes contra a humanidade --tortura, estupro, assassinato, desaparecimento-- que vitimaram opositores do regime e implantaram um clima de terror que marcou profundamente a geração que viveu o período mais duro do regime militar", afirma. 
Para Roque, o Brasil ainda convive com um legado de "violência e impunidade" deixado pela militarização. "Isso persiste em algumas esferas do Estado, muito especialmente nos campos da justiça e da segurança pública, onde tortura e execuções ainda fazem parte dos problemas graves que enfrentamos", complementa.
Acervo UH/Folhapress

2. Censura e ataque à imprensa

Uma das marcas mais conhecidas da ditadura foi a censura. Ela atingiu a produção artística e controlou com pulso firme a imprensa. 
Os militares criaram o "Conselho Superior de Censura", que fiscalizava e enviava ao Tribunal da Censura os jornalistas e meios de comunicação que burlassem as regras. Os que não seguissem as regras e ousassem fazer críticas ao país, sofriam retaliação --cunhou-se até o slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o." 
Não são raras histórias de jornalistas que viveram problemas no período. "Numa visita do presidente (Ernesto) Geisel a Alagoas, achamos de colocar as manchetes no jornalismo da TV: 'Geisel chega a Maceió; Ratos invadem a Pajuçara'. Telefonaram da polícia para o Pedro Collor [então diretor do grupo] e ele nos chamou na sala dele e tivemos que engolir o afastamento do jornalista Joaquim Alves, que havia feito a matéria dos ratos", conta o jornalista Iremar Marinho, citando que as redações eram visitadas quase que diariamente por policiais federais. 
Para cercear o direito dos jornalistas, foi criada, em 1967, a Lei de Imprensa. Ela previa multas pesadas e até fechamento de veículos e prisão para os profissionais. A lei só foi revogada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2009
Muitos jornalistas sofreram processos com base na lei mesmo após a redemocratização. "Fui processado em 1999 porque publiquei declaração de Fulano contra Beltrano. A Lei de Imprensa da Ditadura permitia isso: punir o mensageiro, que é o jornalista", conta o jornalista e blogueiro do UOLMário Magalhães. 


memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br / Arquivo Nacional

3. Amazônia e índios sob risco 

No governo militar, teve início um processo amplo de devastação da Amazônia. O general Castelo Branco disse, certa vez, que era preciso "integrar para não entregar" a Amazônia. A partir dali, começou o desmatamento e muitos dos que se opuseram morreram.
"Ribeirinhos, índios e quilombolas foram duramente reprimidos tanto ou mais que os moradores das grandes cidades", diz a jornalista paraense e pesquisadora do tema, Helena Palmquist.
A ideia dos militares era que Amazônia era "terra sem homens", e deveria ser ocupada por "homens sem terra do Nordeste." Obras como as usinas hidrelétricas de Tucuruí e Balbina também não tiveram impactos ambientais ou sociais previamente analisados, nem houve compensação aos moradores que deixaram as áreas alagadas. Até hoje, milhares que saíram para dar lugar às usinas não foram indenizados.
A luta pela terra foi sangrenta. "Os Panarás, conhecidos como índios gigantes, perderam dois terços de sua população com a construção da BR-163 --que liga Cuiabá a Santarém (PA). Dois mil Waimiri-Atroaris, do Amazonas, foram assassinados e desaparecidos pelo regime militar para as obras da BR-174. Nove aldeias desse povo desapareceram e há relatos de que pelo menos uma foi bombardeada com gás letal por homens do Exército", afirma.
Reprodução

4. Baixa representação política e sindical

Um dos primeiros direitos outorgados aos militares na ditadura foi a possibilidade do governo suspender os direitos políticos do cidadão. Em outubro de 1965, o Ato Institucional número 2 acabou com o multipartidarismo e autorizou a existência de apenas dois: a Arena, dos governistas, e o MDB, da oposição.
O problema é que existiam diversas siglas, que tiveram de ser aglutinadas em um único bloco, o que fragilizou a oposição. "Foi uma camisa-de-força que inibiu, proibiu e dificultou a expressão político-partidária. A oposição ficou muito mal acomodada, e as forças tiveram que conviver com grandes contradições", diz o cientista político da Universidade Federal de Pernambuco, Michael Zaidan.
As representações sindicais também foram duramente atingidas por serem controladas com pulso forte pelo Ministério do Trabalho. Isso gerou um enfraquecimento dos sindicatos, especialmente na primeira metade do período de repressão. 
"Existiam as leis trabalhistas, mas para que elas sejam cumpridas, com os reajustes, é absolutamente necessário que os sindicatos judicializem, intervenham para que os patrões respeitem. Essas liberdades foram reprimidas à época. Os sindicatos eram compostos mais por agentes do governo que trabalhadores", lembra Zaidan.
Folhapress

5. Saúde pública fragilizada

Se a saúde pública hoje está longe do ideal, ela ainda era mais restrita no regime militar. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento, com seus hospitais, mas era exclusivo aos trabalhadores formais. 
"A imensa maioria da população não tinha acesso", conta o cardiologista e sindicalista Mário Fernando Lins, que atuou na época da ditadura. Surgiu então a prestação de serviço pago, com hospitais e clínicas privadas.
"Somente após 1988 é que foi adotado o SUS (Sistema Único de Saúde), que hoje atende a uma parcela de 80% da população", diz Lins.
Em 1976, quase 98% das internações eram feitas em hospitais privados. Além disso, o modelo hospitalar adotado fez com a que a assistência primária fosse relegada a um segundo plano. Não existiam planos de saúde, e o saneamento básico chegava a poucas localidades. "As doenças infectocontagiosas, como tuberculose, eram fonte de constante preocupação dos médicos", afirma Lins. 
Segundo estudo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), "entre 1965/1970 reduz-se significativamente a velocidade da queda [da mortalidade infantil], refletindo, por certo, a crise social econômica vivenciada pelo país". 


memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br /Arquivo Nacional

6. Linha dura na educação 

A educação brasileira passou por mudanças intensas na ditadura. "O grande problema foi o controle sobre informações e ideologia, com o engessamento do currículo e da pressão sobre o cotidiano da sala de aula", sintetiza o historiador e professor da Universidade Federal de Alagoas, Luiz Sávio Almeida. 
As disciplinas de filosofia e sociologia foram substituídas pela de OSPB (Organização Social e Política Brasileira, caracterizada pela transmissão da ideologia do regime autoritário, exaltando o nacionalismo e o civismo dos alunos e, segundo especialistas, privilegiando o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e da análise) e Educação, Moral e Cívica. Ao mesmo tempo, com o baixo índice de investimento na escola pública, as unidades privadas prosperaram.
Na área de alfabetização, a grande aposta era o Mobral (Movimento Brasileiro para Alfabetização), uma resposta do regime militar ao método elaborado pelo educador Paulo Freire, que ajudou a erradicar o analfabetismo no mundo na mesma época em que foi considerado "subversivo" pelo governo e exilado. Segundo o estudo "Mapa do Analfabetismo no Brasil", do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do Ministério da Educação, o Mobral foi um "retumbante fracasso."
Os problemas também chegaram às universidades, com o afastamento delas dos centros urbanos e a introdução do sistema de crédito. "A intenção do regime era evitar aglomeração perto do centro, enquanto o sistema de crédito foi criado para dispersar os alunos e não criar grupos", diz  o historiador e vice-reitor do Fejal (Fundação Educacional Jayme de Altavila), Douglas Apratto.
Roberto Stuckert/Folha Imagem

7. Corrupção e falta de transparência 

No período da ditadura, era praticamente impossível imaginar a sociedade civil organizada atuando para controlar gastos ou denunciando corrupção. Não havia conselhos fiscalizatórios e, com a dissolução do Congresso Nacional, as contas públicas não eram analisadas, nem havia publicidade dos gastos públicos, como é hoje obrigatório.
"O maior antídoto da corrupção é a transparência. Durante a ditadura, tivemos o oposto disso. Os desvios foram muitos, mas acobertados pela força das baionetas", afirma o juiz e um dos autores da Lei da Ficha Limpa, Márlon Reis. 
Reis afirma que, ao contrário dos anos de chumbo, hoje existem órgãos fiscalizatórios, imprensa e oposição livres e maior publicidade dos casos. "Estamos muito melhor agora, pois podemos reagir", diz.
Outro ponto sempre questionado no período de ditadura foram os recursos investidos em obras de grande porte, cujos gastos eram mantidos em sigilo. 
"Obras faraônicas como Itaipu, Transamazônica e Ferrovia do Aço, por exemplo, foram realizadas sem qualquer possibilidade de controle. Nunca saberemos o montante desviado", disse Reis. "Durante a ditadura, a corrupção não foi uma política de governo, mas de Estado, uma vez que seu principal escopo foi a defesa de interesses econômicos de grupos particulares."
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8. Nordeste mais pobre e migração

A consolidação do Nordeste como região mais pobre do país teve grande participação do governo do militares. "Nenhuma região mudou tanto a economia como o Nordeste", diz o doutor em economia regional Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas. 
Com as políticas adotadas, a região teve um crescimento da pobreza. "Terminada a ditadura, o Nordeste mantinha os piores indicadores nacionais de índices de esperança de vida ao nascer, mortalidade infantil e alfabetização. Entre 1970 e 1990, o número de pobres no Nordeste aumentou de 19,4 milhões para 23,7 milhões, e sua participação no total de pobres do país subiu de 43% para 53%", afirma Péricles
O crescimento urbano registrado teve como efeito colateral a migração desregulada. "O modelo urbano-industrial reduziu as atividades agropecuárias, que eram determinantes na riqueza regional, com 41% do PIB, para apenas 14% do total em 1990", diz Péricles. 
Enquanto o campo era relegado, as atividades urbanas saltaram, na área industrial, de 12% para 28% e, na área do comércio e serviços, de 47% para 58%. 
"A migração gerou mais pobreza nas cidades, sem diminuir a miséria no campo. A população do campo reduziu-se a um terço entre 1960 e 1990", acrescenta Péricles. 
Folhapress

9. Desigualdade: bolo cresceu, mas não foi dividido

"É preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo". A frase do então ministro da Fazenda Delfim Netto é, até hoje, uma das mais lembradas do regime militar. Mas o tempo mostrou que o bolo cresceu, sim, ficou conhecido como "milagre brasileiro", mas poucos comeram fatias dele.
A distribuição de renda entre os estratos sociais ficou mais polarizada durante o regime: os 10% dos mais ricos que tinham 38% da renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas décadas depois.
Assim, na ditadura houve um aumento das desigualdades sociais. "Isso levou o país ao topo desse ranking mundial", diz o professor de Economia da Universidade Federal de Alagoas, Cícero Péricles.
Entre 1968 e 1973, o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas, em contrapartida, o salário mínimo --que vinha recuperando o poder de compra nos anos 1960-- perdeu com o golpe. "Em 1974, em pleno 'milagre', o poder de compra dele representava a metade do que era em 1960", acrescenta Péricles. 
"As altas taxas de crescimento significavam mais oportunidades de lucros altos, renda e crédito para consumo de bens duráveis; para os mais pobres, assalariados ou informais, restava a manutenção de sua pobreza anterior", explica o economista. 
Divulgação / Pequi Filmes

10. Precarização do trabalho

Apesar de viver o "milagre brasileiro", a ditadura trouxe defasagem aos salários dos trabalhadores. "Nossa última ditadura cívico-militar foi, em certo ponto, economicamente exitosa porque permitiu a asfixia ao trabalho e, por consequência, a taxa salarial média", diz o doutor em ciências sociais e blogueiro do UOL, Leonardo Sakamoto.
Na época da ditadura, a lei de greve, criada em 1964, sujeitava as paralisações de trabalhadores  à intervenção do Poder Executivo e do Ministério Público. "Ir à Justiça do Trabalho para reclamar direitos era possível, mas pouco usual e os pedidos eram minguados", explica Sakamoto.
"Nada é tão atrativo ao capital do que a possibilidade de exercício de um poder monolítico, sem questionamentos", diz Sakamoto, que cita a asfixia dos sindicatos, a falta de liberdade de imprensa e política foram "tão atraentes a investidores que isso transformou a ditadura brasileira e o atual regime político e econômico chinês em registros históricos de como crescimento econômico acelerado e a violência institucional podem caminhar lado a lado".

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