Racionais, vinte anos Sobrevivendo no Inferno

Em 1997, aparecia álbum que projetou o grupo. Além de sugerir sentido ético para a vida — frequentemente subversivo –, sua música é clarão de lucidez e beleza, em meio à degradação




Por Gabriel Gutierrez, no Nexo - Republicado de Outras mídias


Autodenominado efeito colateral do capitalismo brasileiro dos anos 1980 e 1990, os Racionais Mc’s emergiram no cenário musical trazendo consigo relatos cortantes sobre a vida nas profundezas do gueto brasileiro. Apesar de seu primeiro disco ser de 1990, foi em 1997, há exatos 20 anos, que o grupo transcendeu os limites do universo do Hip Hop com o clássico “Sobrevivendo no Inferno”, e se impôs como o principal nome do rap do país. Com este álbum que, segundo estimativas dos próprios Racionais, vendeu 500 mil cópias oficiais e 500 mil cópias no comércio informal, o grupo estabeleceu o cânone do que se configuraria como a identidade estética do rap nacional. Começava ali o processo de consolidação dos Racionais como um dos principais acontecimentos da música brasileira contemporânea.

Muito da atenção dedicada aos Racionais tem a ver com o caráter político de seus raps. Frequentemente, sua música é exaltada como uma espécie de crônica da vida das classes subalternas do Brasil urbano. De fato, o grupo sempre se identificou como “a voz da favela”. Mas há camadas de significado na sua obra que vão além da denúncia. Elas ajudam a explicar o impacto causado por “Sobrevivendo no Inferno” à época, e ainda hoje. Ao lado de sua interpretação contra-hegemônica a respeito da história da periferia brasileira, o trabalho dos Racionais remete a uma extensa tradição cultural negra, em que política, arte, combate e resiliência se misturam.

Como na “spoken poetry” e nas “prison songs”, esta tradição cultural, que também passa pelo reggae de Bob Marley, o samba do Fundo de Quintal, e vai até a militância do canto de Miriam Makeba, e o jazz de Ornette Coleman, codifica uma leitura negra da modernidade. Dentro dela, a música desempenha papéis múltiplos, operando várias vezes como uma espécie de religião. Faz isso elaborando, por meio da arte, narrativas de possibilidade e transcendência, que auxiliam na ultrapassagem das dramáticas adversidades materiais e simbólicas enfrentadas pelos descendentes de escravizados nas Américas. Exatamente como faziam os spirituals maravilhosamente cantados por Mahalia Jackson ou o jazz espiritualizado de John Coltrane.

Em outras ocasiões, a música negra atua como uma forma de filosofia da ação, construindo uma investigação profunda sobre o ser das coisas e sugerindo posturas. Aqui a arte é veículo privilegiado para a busca e construção de um sentido ético para a vida, frequentemente subversivo. Talvez algo semelhante ao que Fela Kuti pregava na associação que propunha entre o pan-africanismo e o afrobeat, ou na literatura de ancestralidade de Nei Lopes. De uma forma contemporânea e brasileira, os Racionais articularam todas essas pontas. Ouvir “Sobrevivendo no Inferno”, portanto, é falar, de uma só vez, de possibilidades de combate, superação e aquisição de conhecimento para se trilhar a própria trajetória de maneira revolucionária.

Dessa forma, ao lado da representação da vida do jovem periférico, como no rap “Periferia é periferia”, a música de Brown, Blue, Edi Rock e KLJay, com seus elementos líricos e rebeldes, gerou questionamentos sobre as perspectivas de se sobreviver a uma encruzilhada ética decisiva para esse jovem: como escapar à vida rebaixada, que se apresenta na dramática escolha entre o engajamento no crime (como narrado na épica “Tô ouvindo alguém me chamar”) ou a entrada precarizada no mercado de trabalho? Como encontrar a “fórmula mágica da paz” e conseguir ter uma vida digna, sendo negro no gueto do país que experimentou 330 anos de regime escravista oficial? Aos seus ouvintes, os Racionais ofereceram não só identificação, mas também propostas de saída para esse desafio, na forma de batidas e rimas. Com reflexão e sentimento. Num dos países mais desiguais e violentos do planeta, os Racionais abriram brechas, deram provas de amor aos fãs e convocaram seus “mais de 50 mil manos” para a luta cotidiana em nome de uma existência mais potente.

Nesse sentido, as letras de “Sobrevivendo no Inferno” são como poesia de guerra, um clarão de lucidez e beleza, em meio à degradação, generosamente compartilhada com um público que fez dela o refúgio existencial, que nenhuma instituição moderna conseguiu (ou quis) propiciar. Nessas canções, a descrição das adversas condições de vida encontradas nas periferias das grandes cidades brasileiras (como na afamada “Diário de um detento”) é temperada com elementos afetivos (“Mágico de Oz”), filosóficos (“Capítulo 4, versículo 3”) e religiosos (“Jorge da Capadócia”). Sempre em nome de uma luta possível, do micropolítico para o macro. Dessa maneira, os Racionais abriram um efetivo canal de comunicação com seu público. Daí a reverência dos fãs, o respeito do público e o prestígio de que desfrutam na crítica e na academia. Estabelecendo uma relação visceral com a tradição musical da Diáspora Africana, os Racionais mostraram por meio de uma musicalidade furiosa, ao mesmo tempo singular, mas em diálogo com aquela tradição, as flores nos lixões da maior cidade capitalista do Brasil, a São Paulo do final do século 20, onde “Deus é uma nota de cem”.

Mas, afinal, como levar a vida de forma altiva num país violento como o Brasil de 1997, auge do neoliberalismo de FHC? Como resistir num país de fortes contornos excludentes, que criminaliza a pobreza, e no qual o extermínio da juventude periférica é uma política pública informal, que mata em números semelhantes aos de contextos de guerra? Como sobreviver no inferno que era o Capão Redondo daquela época, apontado pela ONU como um dos lugares mais perigosos do planeta? “Vivendo a vida como um artista”, sugere o grupo.

Criando a si mesmo como obra de arte, por meio da autoestima, do sentimento de pertencimento orgulhoso a uma comunidade e da adesão a uma ancestralidade cultural, musical e política, disposta ao combate por meio da arte. Como fica claro na “rajada de PT” em forma de rap que é “Capítulo 4, versículo 3”. Contrariando as estatísticas do genocídio que extermina a juventude negra. Sem, porém, humilhar-se nas ruas atrás da sobrevivência inferiorizada do trabalho subalterno e precário. Num país campeão de desigualdades, viciado em hierarquias, o discurso político e filosófico contido em “Sobrevivendo no inferno” teve o poder de ajudar a oxigenar o confinamento social e cognitivo experimentado por largas parcelas dos jovens periféricos no Brasil, servindo, assim, de inspiração para se ser o que eles chamam de um “preto tipo A”.

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