A prostituição deveria ser ilegal ou regulamentada? Talvez nenhum dos dois…

Modelos que se afastam dos extremos têm ganhado cada vez mais espaço. Conheça como funciona a prostituição ao redor do mundo

Profissional do sexo caminha nas ruas da Holanda, rumo à manifestação “Dia do Amor Pago”. Foto: Cortesia de wijzijnproud.nl

–Mapô, vou ali fazer essa maricona carcomida que ele topou pagar R$ 40 por uma chupetinha. Sério, agora na crise, ninguém topa pagar isso! Me espere aí que sou rápida!
Minha guia travesti corre para o carro do coroa metido a machão e desaparece na escuridão das ruas do centro de Guarulhos, São Paulo. Meu estômago fica leve e sobe – e eu tenho certeza de que nunca senti tanto medo na minha vida.
Estou num ponto apenas para prostitutas travestis e ela fez questão de me fazer parecer uma antes de sair de casa, traçando meus lábios vermelhos, sobrancelhas arqueadas, bochechas e pálpebras de tons gritantes. Para ser repórter, minha missão ali é passar por puta – e fazer ponto sem ser descoberta.
Em menos de cinco minutos, um motoqueiro começa a me rodear. Tira o capacete, me diz que sou linda, tesão escorrendo dos lábios. Pergunta o preço do programa. Eu sabia a estratégia, já que minha intenção não era, de fato, fazer programa algum, apenas ficar imersa, invisível, naquele mundo: cobrar alto, bem acima do preço de mercado local, para que os próprios clientes me descartassem.
— Duzentos, querido.
Os olhos dele se arregalam. Para meu desespero, ele abre a carteira e começa a contar as notas na cabeça.
— É caro e agora não tenho, mas você vale a pena. É tão lindinha e feminina! Vou fazer essa grana e voltar no fim da noite pra gastar tudo com você.
— Ô, amor, mas eu já estou fechando a noite, trabalhei demais hoje.
Ele encara minha frase quase como uma rejeição. E me olha de um jeito tão lascivo, tão sôfrego, que eu começo a planejar como correr quando ele tentar me estuprar. “Meu Deus, ele vai fazer o primeiro movimento”, temo. A tensão dura alguns minutos, enquanto nos encaramos em silêncio, eu de sorriso falso congelado nos lábios, e a coragem que não sei de onde veio fincada na vista. Por fim, ele desiste e vai, prometendo voltar mais cedo outro dia.
Quando minha colega volta, vinte minutos depois, com os quarentinha felizes no bolso (que vão garantir o café da manhã da semana toda), eu conto a ela o ocorrido. Ela escuta como se fosse nada e diz:
– Bafônica, a algumas quadras daqui, um dia eu estava conversando com uma travesti fazendo ponto, num banquinho que vou te mostrar já já, e um cara parou soltando tiro. Só vi a menina cair do meu lado, bala direto na testa. E o nóia nem conhecia ela.
“Só é a favor de criminalizar bordel quem nunca fez ponto na rua!”, arrebata.
Seguimos nossa peregrinação noite adentro. Estamos entre quatro bocas de tráfico de drogas. Enquanto andamos, ela me leva por seus contos de mil e uma noites por ali. Contos que ela presenciou e as outras confirmam em relatos consistentes com sua história. 
Na esquina em que fui abordada, é comum que moleques passem jogando pedras nas prostitutas. Nenhuma razão senão o ódio. Enquanto andamos pela rua, as pessoas nos apontam, riem, xingam. Não é porque parecemos putas, mas porque nos veem trans – e, talvez, porque tantos presumem que as duas coisas sejam uma e a mesma.
Adiante, naquele bequinho, Luisa Marilac, que fez ponto ali por anos antes de virar Youtuber e colunista da Revista AzMina, foi estuprada com uma arma na cabeça quando voltava do trabalho. Pra não correr o risco do cara apertar o gatilho sem querer enquanto gozava, fez que estava gostando, desviou o cano frio devagarinho e deixou ele terminar enquanto fingia gemidos.
Ali, uma travesti matou a outra descarregando todas as balas que tinha e a polícia mal perguntou quem foi, só levou o corpo pro Instituto Médico Legal. Ninguém nunca mais falou do assunto. Mais à frente, uma travesti teve a sorte de sobreviver a sete facadas. E atrás da gente ficava o ponto da cafetina que mandou matar, por dívida, uma mocinha que já tinha chamado de “querida”.
Sim, cafetina na rua. Em Guarulhos, segundo dezenas de prostitutas e prostitutos, é preciso pagar cerca de R$ 30 a diária para fazer ponto na rua – os valores flutuam um pouco se você for mulher, travesti ou homem e estiver mais ou menos dentro dos padrões de beleza. Como o programa varia de R$ 5 a R$ 50, é preciso trabalhar duro só pra cobrir esse custoQuem não paga, apanha ou morre. Uma cafetina assume o poder quando se impõe pela força.
E não é possível esquecer o investimento no próprio corpo: ali, quem não pode assumir um cirurgião plástico com CRM desregularizado paga a cafetina, que também é “bombadeira”, para injetar produto de limpar carros ou lubrificantes de avião nos seios e nos quadris. Devagarinho, que é pra não morrer.
Marilac conta que a bombadeira atual, certa vez, enfiou a agulha fundo demais e acertou o “silicone caseiro”, como elas chamam, direto no coração de sua amiga Maria, uma travesti bem humorada de vozinha fina, que não sobreviveu para mostrar os novos seios aos clientes.
Em uma noite já se entende porque tantas delas morrem tão jovens – puxando a expectativa de vida de travestis e transexuais brasileiras para os 30 anos, conforme estima o grupo de ativismo carioca Transrevolução. Não há dados do IBGE sobre a questão.
Thalia, Jesse, Micaela, Maria. Todas mortas pela rua. E mais. E mais. E mais.
Por meio de nota, a Polícia Civil de Guarulhos afirmou que todos os casos de homicídios são “investigados com o mesmo empenho e rigor, independentemente de gênero, orientação sexual, atividade exercida ou condição social da vítima”. Acrescentou que, nos últimos quatro anos, só duas mortes de travestis foram investigadas, mas apenas uma resultou em prisão.

A polêmica

Foto de cartaz de protesto do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado Pará (GEMPAC). Reprodução

No mundo do feminismo e dos direitos humanos, todo mundo se sensibiliza com o drama dessas mulheres. Das 40 milhões de pessoas que se prostituem no mundo, 90% estão ligadas a cafetões, segundo a Fundação Scelles, um centro de pesquisa internacional que combate a prostituição. Enquanto a realidade mostra que nem sempre cafetões são exploradores – muitas profissionais do sexo os enxergam como agentes ou parceiros comerciais – se a atividade ocorre nas margens do sistema, as chances de constituição de relações trabalhistas exploratórias ou abusos físicos se multiplicam.
Mas há muita discordância sobre a melhor maneira de oferecer às profissionais do sexo segurança e dignidade. Em alguns cantos do mundo, resolveu-se por criminalizar para coibir (uma parte do mercado ou todas); em outros, legalizar; em outros ainda, descriminalizar apenas. O vídeo abaixo explica as diferenças dessas três faces da prostituição.
O tema gera paixões em escala mundial – e quando a Anistia Internacional soltou um relatório, no ano passado, recomendando a descriminalização como o melhor cenário para a defesa dos direitos humanos das prostitutas, feministas trocaram gritos e ofensas em conferências.
De um lado, defensoras do fim da prostituição, conhecidas como abolicionistas, afirmam que a prostituição se trata de uma mercantilização indigna do corpo e da sexualidade da mulher que deveria ser combatida pela sociedade. E que não podemos autorizar que mulheres em situação de desespero econômico (que são a maioria das prostitutas) sejam usadas por homens e cafetões.
“Esse argumento (pró legalização) está baseado em uma visão liberal, centrada no indivíduo e suas escolhas no mercado, sem levar em consideração as relações políticas e de poder envolvidas”, escreveu à AzMina, a psicóloga Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres.
De outro, defensoras da legalização afirmam que tentativas de coibir a prostituição só têm deixado essas mulheres mais às margens da sociedade e que é preciso trazê-las para a legalidade para que elas encontrem mais segurança e portas de saída. E afirmam que qualificar a venda de serviços sexuais como degradante é, no mínimo, equivocado em um contexto capitalista em que todo mundo tem que vender alguma habilidade para sobreviver.
“Essa repetição exaustiva sobre mercantilização dos corpos não encontra muito eco entre nós, trabalhadoras sexuais”, defende a Monique Prada, presidenta da CUTS (Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais).
“Para nós é bastante claro que vendemos serviços – nossa força de trabalho tornada mercadoria, e nunca nossos corpos.”
Entendeu os argumentos centrais dos dois lados? Agora preste atenção aos entraves à discussão – para que a gente os supere e possa ir adiante sem desonestidade com nenhum deles.

No Brasil, as principais organizações de prostitutas se opõem a qualquer forma de criminalização, seja ela de clientes ou de pessoas que obtêm ganho do trabalho de profissionais do sexo. Amara Moira, prostituta, travesti e autora do livro “E Se Eu Fosse Puta”, explica que, se a lei criminaliza o trabalho em clubes e bordéis, sobra para as prostitutas apenas a vulnerabilidade das ruas ou das casas ilegais.
“Claro que também existem abusos nas casas, mas esses abusos se dão sobretudo porque a atividade é exercida à margem da lei, com a participação, inclusive, das forças policiais e do crime, abusos que poderiam ser evitados caso a atividade pudesse ser exercida com amparo da lei e garantias trabalhistas para as profissionais do sexo.”

Ilegalidade e legalidade

O entusiasmo inicial que a prostituição tinha proporcionado para Rachel havia se convertido em tráfico sexual, dor e vício. Seu explorador a tinha bem amarrada em dívidas e manipulação psicológica. Jamais a deixaria ir. A saída só viria por meio de uma bala na cabeça, que ela comprou naquela manhã, com a facilidade só possível nos Estados Unidos, e acolheu como amiga. O filho estaria melhor sem ela. O mundo se livraria de mais um lixo humano.
Tirou o dia para se preparar para a morte.
Amortecer a dor com drogas, viver a rotina e sentir que era mesmo inescapável. Já não se reconhecia, não tinha mais alma. Então, Débora* entrou pelas portas do clube com um folderzinho na mão e ofereceu pra ela uma bolsa em uma clínica de recuperação para vítimas de tráfico sexual.
Instalação artística ‘The Journey Against Sex Trafficking’, em Londres. Foto: Reprodução

“É um milagre que eu tenha sobrevivido”, reflete Rachel. “Sabe, no começo tinha algo de muito empoderador em ser desejada daquela forma. Mulheres, principalmente mulheres em frangalhos como eu, vivem em busca de aprovação. Eu me sentia poderosa: podia fazer os homens fazerem o que eu quisesse só por ter uma vagina, era como um superpoder.”
A sensação não durou. Richard, seu cafetão explorador, foi chegando aos poucos, junto com as drogas. Queria que ela saísse de um cliente e entrasse no próximo, num ritmo exaustivo. Ela tomava “multas” por deslizes irrelevantes, como tropeçar no poledance. A dívida foi crescendo, junto com a manipulação psicológica. Atendia até cinco clientes por noite, cobrando US$ 1.500 cada. Mas conhecia meninas que atendiam até 15.
“Usava tantas drogas que era estuprada e só me dava conta na manhã seguinte. Meu cabelo começou a cair e eu já não estava fazendo dinheiro nenhum quando fui encontrada pela Débora”, lamenta.
Rachel trabalhava em Atlanta e sua história é a razão pela qual, atualmente, a maioria das instituições de direitos humanos não apoia a criminalização completa da prostituição vigente nos EUA. Com medo da polícia e do Estado, prostitutas são presas fáceis de traficantes sexuais (a gente explica o processo em detalhes nesta reportagem). Um dia são livres, no próximo, escravas sexuais.
Por isso, abolicionistas têm defendido o modelo sueco, que aposta na criminalização dos clientes e cafetões, como uma alternativa. A PhD americana Melissa Farley é uma delas. Depois de investigar o tema em nove países, entrevistar 854 pessoas (entre clientes e prostitutas) em cinco continentes, ela estima que cerca de 95% das prostitutas gostariam de sair deste ramo.
“Se elas conseguissem casa, comida e dinheiro sem isso, não fariam isso”, atesta, confiante.
Nadia van der Linde, coordenadora do fundo holandês Red Umbrella de Apoio a Trabalhadoras do Sexo, tem uma posição diametralmente oposta e defende a descriminalização como a melhor saída, para que prostitutas tenham direitos trabalhistas, além de poder processar quem tirar proveito de sua mão de obra. Com uma vida dedicada ao tema, Nadia não considera ideal nem mesmo o modelo holandês implantado no ano 2000, de regulamentação, que considera burocrático e excludente.
“A regulamentação na Holanda é tão exigente que quase ninguém consegue obter um alvará”, conta. “Apesar dos bordéis e vitrines oferecerem mais segurança, com a existência de botões do pânico e outros artifícios, na prática, toda a implementação da lei tem caminhado na direção de se livrar das trabalhadoras do sexo e não de melhorar as suas vidas.”
De fato, só 17% das prostitutas que publicam anúncios na internet ou em jornais trabalham em bordéis com alvará de funcionamento regularizado pela Câmara de Comércio, segundo um relatório publicado em 2o10 pelo RIEC Noord-Holland, um organismo do governo holandês.
Yvette Luhrs, atriz pornô e presidente do PROUD (Sindicato de Profissionais do Sexo da Holanda), acrescenta que mesmo as prostitutas legalizadas só conseguem trabalhar em bordéis pertencentes a outras pessoas, e não de forma autônoma. “Funciona assim: mesmo trabalhando em um bordel licenciado, você precisa provar que falou com alguma autoridade municipal. Nas vitrines, precisa de um registro na Câmara do Comércio”, explica.
“E como, pela lei, elas apenas usam o espaço das casas e não são funcionárias, não têm direitos trabalhistas. Ou seja: caem em um limbo social”, lamenta.

Prostitutas holandesas protestam pela descriminalização na manifestação “Dia do Amor Pago”. Foto: Cortesia de wijzijnproud.nl

Desamor pelos extremos

Entrevistadas das duas vertentes, no entanto, concordam que em um mundo sem machismo o número de prostitutas cairia vertiginosamente. “Se houvesse justiça e equidade social, não haveria prostituição como a conhecemos hoje”, diz Melissa, de um lado. “Trabalho sexual não é pra todo mundo, como ser médico não é pra todo mundo. É uma profissão que exige qualificação e vocação”, afirma Nadia, de outro.
O dado mais curioso das duas opiniões é observar como, internacionalmente, a discussão tem se afastado dos dois extremos de regulamentação estrita ou criminalização completa. Para sindicatos e organizações internacionais de prostitutas, um modelo tem despontado como interessante: o neozelandês.
Ali, simplesmente não há leis sobre prostituição. Ou seja, prostitutas e donos de bordéis podem manter relações empregatícias como em qualquer outra carreira. A Justiça do Trabalho cuida das controvérsias e a polícia, dos crimes. “Na Holanda, nós dos sindicatos de profissionais do sexo temos lutado para que este sistema seja implantado por aqui também”, diz Yvette.
O calcanhar de Aquiles do modelo, contudo, está nas imigrantes, que não gozam dos mesmos direitos e acabam vulneráveis à violência e exploração.
Mesmo assim, o sistema tem atraído mulheres como a carioca Iracema, que desde as Olimpíadas do Rio tem juntado dinheiro para migrar e prostituir-se por lá. “Duas de minhas colegas já foram e eu vou em seguida”, conta. “País sem desigualdade, né? É mais seguro.”

Clientes na cadeia

Analisar o contexto do modelo sueco é desafiador, já que os dois lados se acusam de manipular estatísticas. A criminalização dos clientes passou a valer em 1999 e, em 2010, o governo publicou um extenso relatório com os resultados obtidos na primeira década.
Segundo ele, no período, o número de mulheres trabalhando como prostitutas caiu pela metade. A proporção de homens que admitem pagar por sexo caiu de 13,6%, em 1996, a 7,8%, em 2008. Por outro lado, a venda de serviços sexuais via internet cresceu. “Na verdade, a prostituição não diminuiu, as prostitutas apenas migraram para a internet ou se esconderam do governo para não colocar seus clientes em perigo”, contesta Nadia. “Há também relatos de prostitutas perdendo a guarda de seus filhos por um verdadeiro moralismo do governo.”
Defensoras do modelo, no entanto, desafiam as afirmações de Nadia: “Se os clientes conseguem encontrar as prostitutas, a polícia e o serviço social também conseguem chegar até elas”, registrou, em um relatório, a organização Lobby das Mulheres Europeias. E acrescentam que o número de prostitutas que negociam seus serviços pela internet “é muito maior em países vizinhos, como a Dinamarca e a Noruega.”

O filho caçula dos modelos legais



Capitu* não suportava ver os pais naquela penúria. Eles tinham se apaixonado nos corredores do restaurante gaúcho em que trabalham, trocando olhares entre espetos de picanha. Mais tarde, ele acabou assumindo a profissão de encanador industrial. Ela, costureira – até se aposentar por invalidez. Aos 17 anos, a filha única do casal tomou para si a responsabilidade de resolver os problemas financeiros da família.
No prostíbulo em que se apresentou para trabalhar ou nos motéis em que foi com os clientes, ninguém nunca nem sequer perguntou a sua idade. “O meu primeiro cliente era um professor universitário que começou o sexo anal sem camisinha ou lubrificação”, lembra. “Eles gostavam dessa coisa de ‘ninfeta’ que eu tinha. Mas eu sempre saía do programa quase chorando, me sentia suja.”
Foi para evitar que meninas como Capitu (elas são 2 milhões no mundo) entrassem no mercado do sexo, entre outras violências, que a Suíça resolveu, em agosto de 2013, criar seus drive-ins. A ideia é que fossem estabelecimentos seguros, geridos pelo governo, em que prostitutas pudessem pagar um pequeno aluguel e atender ali seus clientes, sob os olhares atentos do Estado.
A grande sacada foi centralizar até 50 profissionais do sexo no mesmo local para fornecer camisinhas, atendimento médico, proteção policial e consultoria de assistentes sociais.
Os drive-ins ficam abertos todos os dias – de domingo a quarta, de 7h da noite às 3h da manhã, e de quinta a sábado, quando o movimento é maior, de 7h às 5h. Um ano depois, tanto o governo como o serviço social já avaliavam a experiência como um sucesso.
Quando conto sobre este modelo para a holandesa Yvette e pergunto o que acha dele, ela retruca, em uma ironia bem humorada:
— Por um acaso tem um lugar desses pra jornalistas?! Não! Precisamos começar a ver trabalho sexual como trabalho. Claro que existem profissionais desta área que vêm de situações de vulnerabilidade e é muito bom que o governo crie um ambiente em que elas possam trabalhar de forma segura, mas este não pode ser o padrão.
“Não podemos cair na falsa ideia de que toda prostituta, por definição, precisa de assistência social. Não queremos ser sempre vistas como vítimas.”

Michês e “gays for pay”

Ele ainda nem fez 22 anos. É negro, ingênuo, fala rápido e tem ideias desorganizadas (seriam drogas?). Tão mirrado que os outros michês duvidam que tenha clientela. Mesmo assim, afirma conseguir cobrar até R$ 100 o programa na Praça da República.
— 100?!
— Claro, 100! É República, mulher, centro de São Paulo, centro do Brasil! E se quiser me comer eu cobro é 200.
Atração sente mesmo é pela figura feminina, pode ser em corpo de mulher cis ou travesti, não importa. Homem só topa por dinheiro.
Nas boates dos EUA, chamam seu tipo de “gay for pay” (gay por dinheiro), e travestis me contam que eles conseguem melhores valores pelo programa que as meninas – até na prostituição, a diferença salarial!
São duas da manhã e mais três michês de aparência viril se aproximam. Bêbados e com garrafas de vinho barato na mão. Dizem que não aguentam a noite sem isso ou cocaína.
— Depende o dia, tem gente que faz programa por uma carreirinha ou uma pedra de crack – balbucia um rapaz bonito, de boné estilo Charlie Brown Jr.
Correndo, mais cedo, tinha vindo em nossa direção uma gay que parecia uma boneca. Ficava entre a zona dos michês e das travestis – não sabia onde pertencia. A maquiagem escondia a barba da pele branquinha e lisa e os lábios em formato de maçã eram contornados com um gloss clarinho. O corte de cabelo, curto e desfiado, complementava a beleza andrógina.
— Quero juntar três meses de aluguel para sair de casa e começar a me montar – a fala, na velocidade da cocaína. – Eu preciso começar a ser quem eu sou, mas não tenho coragem de ferir a minha mãe. Ela me aceita gay, mas travesti não vai aceitar.
Mas eu preciso ser quem eu sou.
Outra mocinha a interrompeu para contar que, na semana passada, foi presa na casa de um cliente que se recusava a pagar o programa. Pra fugir, teve que arrombar o portão com tanta força que estourou a prótese de silicone no peito. Levantou a blusa pra gente conferir com as próprias mãos.
Mas, na maior parte da noite, o tédio.
Vida fácil, não há – e quem inventou o bordão popular com certeza nunca soube de verdade do que se tratava a prostituição. Os carros passam e xingam, atiram lixo, os clientes negociam descontos desdenhando delas e deles. Às vezes, surgem policiais corruptos extorquindo ainda mais dinheiro delas. As pernas doem equilibradas nos saltos; o frio e a chuva, intransigentes. Uma senhora resiliente de não menos de 60 anos, com cara sofrida de avó, espera fazer programa por esmolas até as quatro da manhã em becos escuros. A maioria delas nem sabe se vai comer bem naquela semana.
E eu que morri de medo do homem na moto.


* Nomes fictícios são usados para proteger as fontes de retaliações

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