Drogas, capitalismo e política (4): não serás reprimido

Indústria farmacêutica, que lucra muito com epidemia mortal de opioides nos EUA, tem um parceiro de luxo. O Estado, que reprime certas substâncias, fecha os olhos para outras…


Por Paulo Pereira* - Via Outras Palavras




MAIS:Leia a primeira parte, a segunda parte e a terceira parte desse thriller acadêmico.



Após transitar por overdoses em Toronto (1º texto) e entender o contexto mais amplo do abuso de opioides no Canadá e nos Estados Unidos (2º texto), investiguei o papel da corporação farmacêutica transnacional Purdue Pharma nessa crise (3º texto). Na terceira parte da investigação destaquei a importância da criação e comercialização do medicamento Oxycontin, produzido desde meados dos anos 1990, na evolução do abuso de opiáceos semissintéticos e opioides no Canadá e, principalmente, nos Estados Unidos.

A trilha dessa trama desembocou, finalmente, no que percebi como o epicentro da investigação: a Agência de Controle de Alimentos e Drogas (FDA), uma das agências federais do ministério da Saúde dos Estados Unidos. É dela que trata esse texto.

A FDA, um órgão político e técnico, é um dos principais responsáveis pelo controle das drogas nos Estados Unidos, estabelecendo critérios de regulação para diferentes tipos de produtos, incluindo medicamentos. Assim, uma das hipóteses que formulei foi a de que o rápido espraiamento do OxyContin e similares não poderia ter sido realizado sem o consentimento da FDA.

Essa ideia rapidamente se comprovou, já que a FDA, como agência executiva do governo estadunidense, não só aprovou o OxyContin na década de 1990, como renovou sua licença regularmente ao longo dos anos e não demandou restrições na sua forma de distribuição ou produção. E o mesmo pode ser dito da Health Canada, a similar da FDA no país, que aprovou em 2012 a forma genérica do OxyContin, mais fácil de inalar ou injetar. A ministra da saúde canadense à época, Leona Aqlukkaq, no entanto, eximiu-se de qualquer responsabilidade pela crise dos opioides no país, afirmando que a lei não permite ao órgão reter a aprovação de uma formulação qualquer “apenas por causa do risco de uso indevido”.

Na contramão dessa avaliação, no entanto, surpreende a declaração do ex-comissário executivo da FDA entre aos anos 1990 e 1997, David Kessler, para quem “a FDA tem responsabilidade, as companhias farmacêuticas têm responsabilidade, os médicos têm responsabilidade. Nós não vimos essas drogas por aquilo que elas realmente eram.”

Nessa mea-culpa, o argumento do “erro” e da “incompetência” dificilmente são suficientes para explicar a situação atual. Na verdade, essa narrativa tende a encobrir uma série de interesses de mercado, individuais e coletivos, sustentados por decisões políticas que viabilizaram a crise de uso e abuso de opioides, impedindo, além disso, a compreensão de dinâmicas estruturais de funcionamento do controle de drogas nos países.


Logo da Agência de Controle de Alimentos e Drogas (FDA) dos EUA





O trâmite de aprovação do OxyContin pela FDA na década de 1990, por exemplo, continha fatos no mínimo surpreendentes. Por exemplo, em 1989 já havia fortes indícios de que o medicamento não tinha a duração prevista (12h) desde os primeiros testes clínicos em mulheres porto-riquenhas em fase de recuperação de cirurgias abdominais e ginecológicas. Mesmo assim, ele teve a aprovação de uma renomada autoridade médica em avaliação de risco clínico à época, Curtis Wright, também responsável pelo “Centro para Avaliação e Pesquisa de Drogas” da entidade. Anos depois, Curtis deixou a FDA para se tornar um dos responsáveis pelo desenvolvimento de novos fármacos para a Purdue Pharma, a empresa farmacêutica produtora do OxyContin.

A essa conduta individual, que poderia ser considerada um desvio ético, soma-se um procedimento institucional questionável. Desde 1992, a lei Prescription Drug User Fee Act garante à FDA receber recursos da indústria farmacêutica para avaliar as novas drogas produzidas por essas mesmas corporações. Até 2016, essas taxas de apoio haviam somado US$ 7.67 bilhões e, no ano de 2016, elas foram maiores do que os recursos públicos alocados pelo Congresso. Essa articulação público-privada na condução do controle de drogas levantava, obviamente, suspeitas sobre a confiabilidade e independência das avaliações da FDA. E, sobre isso, um caso merece destaque.

Em 2015, após a Purdue Pharma já ter sido condenada em um processo judicial por marketing abusivo e o aumento da dependência e overdoses de opioides ser uma realidade nos Estados Unidos, a FDA aprovou o uso do OxyContin para crianças a partir dos 11 anos de idade para controle da dor. À época, as críticas foram variadas. Andrew Kolodny, médico e diretor executivo da organização Médicos pela Prescrição Responsável de Opioides, afirmou que estudos aprofundados não haviam sido feitos, o que era tão mais preocupante pelo fato dos jovens, em processo de formação física e psíquica, serem mais propensos a desenvolver um uso problemático. Com a mesma preocupação, o Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (NIDA, em inglês), uma instituição de pesquisa do próprio governo federal norte-americano, alertou, em seu site, que opioides, tal como o OxyContin, eram aditivos em jovens e poderiam levar ao uso de heroína.

Em casos como esse, no qual há relevante interesse público ou a questão é controversa, a FDA geralmente teria como prática convocar comitês independentes de especialistas para emissão de pareceres. No entanto, nenhum comitê desse tipo foi chamado para a avaliação da aprovação do uso pediátrico de OxyContin. De acordo com Caleb Alexander, presidente de outro comitê da FDA e diretor de um centro sobre uso seguro de drogas na Universidade Johns Hopkins, dificilmente um grupo assessor aprovaria o OxyContin para esses propósitos em tal contexto.

Olhando para o cenário atual da aguda crise de abuso de opioides nos Estados Unidos, espera-se que a estrutura governamental estadunidense se sentiria obrigada à uma redefinição de rumos do funcionamento do controle de drogas. Surpreende mais ainda os discursos do atual presidente Donald Trump durante as eleições de 2016 e nos seus primeiros meses de governo, que fantasiaram um embate de grandes proporções com as corporações farmacêuticas. Trump afirmou reiteradas vezes que enfrentaria seus lobbys em diferentes frentes. No entanto, o discurso, como na maioria das vezes ocorre, esconde mais do que revela e a atuação de Trump nos bastidores sugere uma direção praticamente oposta.

Não houve até o momento qualquer declaração oficial de emergência nacional, como indicavam seus discursos. A recente declaração da secretaria federal de saúde, que passou a tratar a crise de opioides como uma emergência pública de saúde, confere algumas prerrogativas de ação para as entidades federativas. No entanto, tem sido avaliada por especialistas como pouco efetiva para lidar com uma situação mais complexa e extrema. Além disso, nada indica que as recomendações dadas pela Comissão de Combate à Dependência de Drogas e à Crise de Opioides, criada pelo próprio presidente, estejam sendo colocadas em prática.

De outro lado, Trump recentemente nomeou Alex Azar II o novo secretário federal da saúde, responsável pela FDA e pela regulação das indústrias farmacêuticas. Azar II foi membro do conselho de administração de um dos maiores lobbys da indústria farmacêutica no Congresso Americano, a Biotechnology Innovation Organization. Além disso, trabalhou para uma das maiores companhias farmacêuticas do mundo, a Eli Lilly, que em 2009 pagou quase US$ 1.5 bilhão como acordo em acusações criminais referentes à promoção indevida do medicamento Zypreza, um antipsicótico.

Alguns meses antes, Trump já havia nomeado o médico Scott Gottlieb, docente da Universidade de Nova York e membro do think tank conservador American Enterprise Institute, como novo comissário responsável pela FDA. Crítico da intervenção governamental no mercado de medicamentos para reduzir seus custos, documentos recentemente revelados mostram que Gottieb obteve mais de US$ 3 milhões ao longo de 2016 e parte de 2017 em honorários referentes a palestras, consultorias, participação em conselhos e outros tipos de trabalhos relacionados a empresas farmacêuticas e firmas de investimentos focadas na área da saúde.

Foi particularmente curioso ler um texto de opinião de Gottlieb, publicado no Wall Street Journal em 2012, intitulado “The DEA’s War on Pharmacies—and Pain Patients”, condenando as ações da Agência de Combate às Drogas (DEA) norte-americana contra o descaminho de prescrições de oxicodona, que incriminavam empresas farmacêuticas. De acordo com Gottieb, tais empresas não poderiam ser tratadas como os traficantes de drogas das ruas. Afinal, não eram “cartéis de drogas colombianos” e “seus CEOs não eram Pablo Escobar”.

Essa circulação das elites nacionais estadunidenses entre a esfera privada e pública evidencia as articulações entre a política de drogas e a economia capitalista. O mais provável é que essa não seja uma situação excepcional e sim uma parte do funcionamento estrutural do controle de drogas pelos Estados. Se isso for verdade, a investigação poderia identificar articulações similares em outros espaços e mesmo sua rearticulação com atores correlatos em outros países, de forma a garantir a reprodução do mercado de medicamentos opioides.

Sobre esse último aspecto, vale notar que nos últimos anos a exposição midiática sobre os problemas relacionados ao abuso de opioides e sua vinculação com a expansão do OxyContin fez com que o medicamento apresentasse uma tendência de baixa nos Estados Unidos. Suas prescrições apresentam uma queda acumulada de 40% desde 2010. Por isso, a família Sacker, dona da Purdue Pharma, utilizando uma rede internacional de companhas farmacêuticas, conhecida como Multipharma, começou a construir estratégias de vendas em novos mercados pelo mundo, dentre os quais se destaca a América Latina. A Figura 1 mostra a desproporção de uso de opioides entre, de um lado, Estados Unidos e Canadá e, de outro, os países latino-americanos, o que os qualificam como um mercado extremamente promissor.

Figura 1. Distribuição de opioides equivalentes à morfina (morfina em mg / paciente que necessita de cuidados paliativos, média de 2010 a 2013) e porcentagem estimada de necessidades atendidas para as condições de saúde associadas a graves problemas de saúde


Fonte: Knaul et al / The Lancet Comissions




A atuação dessa companhia no Brasil, por exemplo, se iniciou esse ano, ao patrocinar um evento no Rio de Janeiro sobre dor em pacientes com câncer. Nele, o médico Joseph Pergolizzi, um porta-voz do uso de opioides, que coordena uma clínica para combate à dor na Flórida, fez uma palestra na qual “desmistificava” os problemas com o uso de medicamentos com essa base farmacológica. Para os executivos da Multipharma, essa “opiofobia” precisa ser combatida em diferentes frentes, de forma a ampliar o mercado de opioides em outras regiões do mundo para além da América do Norte.

Ao final dessa investigação, rememorei o caminho trilhado com a ajuda de alguns ensinamentos do detetive Auguste Dupin, personagem do romance de Edgar Allan Poe, Os Crimes da Rua Morgue. Essa crise dos opioides na América do Norte dá a oportunidade de observar com diferentes lentes as articulações e rearticulações entre alguns dos atores que estabelecem o controle das drogas no âmbito doméstico dos países, com relevantes impactos internacionais. Mais interessante ainda, apesar de ter começado pela discussão usual sobre o tema, focada na ilicitude do uso de drogas e na ação coercitiva dos aparelhos policiais no Canadá, avancei rapidamente para a importância das corporações farmacêuticas transnacionais e, decorrentemente, do mercado capitalista no debate sobre as drogas. Esse olhar possibilita apontar algumas fissuras em barreiras morais e disciplinares construídas há muito, entre o lícito e o ilícito, entre o público e o privado e entre o local e o global.

O final desse thriller acadêmico marca somente mais uma etapa da expansão dos opioides no mundo. Seu histórico, nuances e desdobramentos para a área de segurança das drogas é um vasto campo de investigação aberto. Para mim, esse thriller somente inicia esse desafio.


PS: vale um registro de agradecimento ao jornalismo investigativo de altíssima qualidade que encontrei ao longo da pesquisa, cujas reportagens estão referenciadas em hiperlinks ao longo dos textos. Eles conferiram o suporte para a redação sobre o tema dos opioides, revelando documentos, fatos e dados fundamentais.




* Professor do departamento de relações internacionais da PUC-SP e pesquisador visitante do departamento de criminologia da Universidade de Ottawa, Canadá



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