Paradoxos do desenvolvimento - Mulheres pagam uma conta alta pelo crescimento alavancado por Suape

De, Aurora - Diario de Pernambuco - André Duarte (texto) -  Alcione Ferreira (fotos)

Um debate reunindo feministas, engravatados da Petrobras e gestores públicos do litoral Sul de Pernambuco chegou a um entendimento: as janelas dos ônibus que transportam os trabalhadores do Porto de Suape teriam que ser fechadas. Àquela altura, final do primeiro quadrimestre deste ano, a ideia era impor um freio nas gracinhas disparadas contra mulheres no caminho até os canteiros e fábricas. Outras queixas, no entanto, convergiam para um problema bem mais complexo que uma cantada de mau gosto. No rastro do festejado polo de desenvolvimento que concentra mais de 60 mil pessoas, a maioria homens, algumas cidades do entorno tomaram subitamente um atalho entre o passado sucroalcooleiro patriarcal e a realidade industrial competitiva. Algo inegavelmente positivo em sua essência econômica, mas não menos machista na engrenagem.


A avalanche de trabalhadores de outros estados que aportou na região e fincou residência em municípios como Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca acabou potencializando situações diárias de tensão de gênero, muitas delas subnotificadas por uma espécie de cultura do medo capaz de corromper a autoestima. De um comentário atrevido em um bar a uma agressão física causada por ciúme, os casos pulverizam-se em diversas variações de violência contra as mulheres, tendo como alvo preferencial aquelas nascidas no Eldorado pernambucano. Assédio, gravidez na adolescência, prostituição e ameaças dentro do núcleo doméstico, temas recorrentes no histórico rural da região, agora multiplicam-se numa lógica de convivência social previsível.

A chegada da mão de obra massivamente masculina, que depois do expediente se materializa no vizinho de rua, no cliente da padaria ou da fila do banco, tem gerado atritos cotidianos com desdobramentos na Polícia e na Justiça, que diante de uma demanda crescente criaram, há menos de um ano, a primeira Delegacia da Mulher e a primeira Vara da Família no Cabo. Com salário-base que gira em torno de R$ 2,5 mil, operários de todo o país também atracaram com suas inquietações pessoais dentro das malas, o que, em parte, dá capilaridade aos atritos.

Divididos entre a opção de desembolso de até um terço do rendimento mensal para alugar uma casa na região ou aboletar-se em alojamentos com até 3 mil homens, cerca de 40% da massa trabalhadora orbita nas cercanias do empreendimento-mãe da propalada pujança pernambucana. Entre os casados, geralmente resta a distância da mulher e dos filhos, o que não raro desmorona uniões Brasil afora ou descamba em casos extraconjugais. “O aluguel de uma casa aqui em Gaibu (praia do litoral do Cabo) custa entre R$ 800 e R$ 900. Nossa folga de campo é de dois dias a cada três meses. Não compensa trazer a família, e fica muito difícil viajar”, situa o soldador sergipano Antônio Carlos da Silva, 25 anos, há três trabalhando em Suape. Com duas filhas em Aracaju, desfez o casamento no estado natal, até então mantido por telefone, “porque já não estava dando certo”. Se não é exatamente um conto de fadas, a história afetiva do soldador, que agora é noivo de uma pernambucana, ainda não é ingrata com a parte nativa, geralmente desprotegida e fadada ao abandono assim que o contrato acaba.

Os números são difusos e não há unificação dos dados internos das mais de uma centena de empresas instaladas no complexo portuário, mas estima-se que apenas 4% da massa de assalariados da Refinaria Abreu e Lima, por exemplo, seja formada por funcionárias, a maioria tocando a vida em subempregos como copeira e auxiliar de serviços gerais. Algo fácil de ser fisgado num simples passeio pelo centro caótico do Cabo. Com ruas nervosas, comércio popular vigoroso e controle urbano precário, a cidade vive um desfile sem fim de fardamentos coloridos dos trabalhadores, em que pouco se veem modelos femininos.

ONGs que trabalham há décadas com questões de gênero declaram que o progresso impulsionado pela chegada dos navios e fábricas em terras de aridez social ainda não beneficiou, na prática, o cotidiano das habitantes, tampouco recheou de carimbos suas carteiras de trabalho. Entidades internacionais e locais, como a ActionAid e SOS Corpo, encabeçam ações e campanhas para expor o vácuo. Algo que Nivete Azevedo, uma professora municipal de geografia que entrou na militância feminista meio por acaso, já faz desde 1994, quando ingressou no Centro de Mulheres do Cabo, do qual é coordenadora. “Tem uma relação social e cultural estabelecida na nossa sociedade machista e patriarcal, mas o fato de a população que chegou abruptamente aqui ser majoritariamente masculina agravou muito a situação. Esse convívio meio que forçado fez com que nós, mulheres, tomássemos um susto. A gente não se reconhece mais, não sente segurança de andar, o assédio é uma coisa absurda”.

De todas as bandeiras empunhadas há 29 anos pela organização, começando pelo abastecimento d’água, melhoria da saúde ginecológica, luta por creches e alfabetização, a tentativa pela retomada de uma relação de gênero equilibrada tem sido uma batalha hercúlea contra dois contrapesos: a tradição canavieira calcada no papel central do homem e o modelo de desenvolvimento rebocado ostensivamente pela força do capital. “O Cabo é uma cidade provinciana, com forte influência do rural, da cana. A partir da década de 1960, as primeiras indústrias selecionavam quem poderia estar com esses empregos, que já exigiam conhecimento mais técnico. Eram poucas pessoas que conseguiam ser operárias. Muitas mulheres foram para a construção civil, para o comércio ou continuaram na cana ou em subempregos de Suape. É a extensão do trabalho reprodutivo”, diz Nivete.

Na última década, fenômenos isolados tomaram corpo, juntamente com o inchaço populacional masculino. A exploração de adolescentes tem feito de espetinhos e barracas, muitas localizadas nas proximidades de escolas, cenários comuns dessas abordagens: “Trazer as novinhas é o que mais atrai. É assim nas obras da usina de Belo Monte, no Pará; no complexo petroquímico do Rio de Janeiro”, diz Nivete. É quando as indefectíveis roupas de trabalho surgem como uma espécie de “conto da farda”, muitas vezes vislumbrada como um guindaste social por gerações inteiras de meninas com pouca ou nenhuma perspectiva profissional. “Os homens de farda são estereótipos.  
Símbolos de uma condição de vida, de dinheiro. Eles se sentem como representantes do poder e usufruem disso”, diz Nivete, engatando uma ponderação: “É muito cômodo para as empresas trazerem esses homens sem suas famílias, com trabalhos temporários. Então, qual é o lazer deles? Esses homens vão fazer o quê depois do trabalho? A diversão vira a rua, as mulheres. Eles têm que extravasar”.


ecos da casa-grande

O pai de Samita Silva e os tios de Letícia dos Santos Dias, ambas estudantes de 18 anos do último ano do ensino fundamental, trabalham no complexo de Suape. Amigas de longa data, caminhavam juntas até a escola estadual quando foram abordadas pela reportagem com perguntas sobre o tal assédio com sotaque de fora. Devolveram as perguntas com colocações monossilábicas e um desinteresse crônico no assunto. Uma conversa travada que descambou para os planos de vida da dupla, a menos de dois meses do encerramento do ano letivo. Outro breque: nenhuma sabia o que fazer em 2014, e nunca conversaram com os pais sobre o assunto.

A economista Tânia Bacelar, sócia da consultoria Ceplan e professora da pós-graduação em geografia da Universidade Federal de Pernambuco, afirma que o “surto de investimentos” não pode ser o único vilão de uma monocultura machista por natureza. “Suape agravou, mas a história econômica da região já impunha um papel de submissão às mulheres. O corte da cana embrutece. É um trabalho ingrato. Muitas mulheres foram tratadas pelos maridos embaixo de pau”. Há dois anos, a especialista em planejamento participou da coordenação de um estudo encomendado pelo governo estadual para o território de Suape que apontou, entre fatores positivos e negativos, dois pontos preocupantes: picos de gravidez na adolescência e violência doméstica. “Concentrar de uma só vez cerca de 40 mil trabalhadores em um empreendimento como a refinaria, sendo a enorme maioria homens, não é um fato normal. Em qualquer lugar do mundo causaria problemas”. A planilha apresentada pela Secretaria de Saúde do Cabo mostra que, desde 2001, entre 23% e 30% de todos os bebês tinham mães com menos de 19 anos. Somente no ano passado foram quase 900 partos, mas não há indicação sobre a origem dos pais.

“São meninas novas e pobres, de engenho, que viram objetos nas mãos desses trabalhadores. Elas veem naquela farda uma mudança de vida. Só que não é bem assim. Eles têm esposas lá fora, têm filhos. Elas dificilmente são ‘assumidas’, e muitas vezes engravidam”, relata a ambulante Cirleide Cristina da Silva, 44, levando à frente um semblante castigado, que lhe confere uma aparência de uns 15 anos a mais que a idade. Ela reitera a tese da economista com a autoridade empírica de quem sofreu durante duas décadas agressões físicas praticadas pelo ex-marido. Há sete anos, no dia 22 de setembro de 2006, entrava pela primeira vez em uma delegacia para denunciá-lo, o que foi fundamental para mantê-lo preso por quatro meses. Deixou o depoimento como um símbolo na luta contra a violência doméstica por ter sido a primeira a mulher vítima do Cabo a virar o jogo contra o agressor.

Na ocasião, a filha mais velha, igualmente engolida pela violência de casa, mas farta da figura paterna opressora, buscou secretamente refúgio em cursos do Centro de Mulheres do Cabo e voltou com uma novidade para a mãe, apresentada como salvação: um panfleto explicando didaticamente os desdobramentos da Lei Maria da Penha, recém-aprovada. “Antes disso, não adiantava prestar queixa, porque ele ia fazer coisa pior quando saísse de lá. Mas o panfleto mostrava que a lei tinha mudado as coisas”. Foi quando notaram a chegada do agressor e esconderam às pressas o papel em cima da geladeira. Um vento mais forte derrubou o material no chão, que logo foi descoberto por ele. Em mais um acesso de fúria, queria obrigar mulher e filha a, literalmente, engolirem o papel como castigo.
A recusa das duas antecedeu outra ofensiva ainda mais violenta, quando a adolescente foi jogada contra a parede e cortada por pedaços de um espelho quebrado. Ver a filha ensaguentada foi o ultimato para Cileide, que conseguiu correr até o orelhão mais próximo e ligar para a ONG, que, por sua vez, acionou a Polícia Militar.

“Ainda não sei se é o caso do Cabo, mas o desenvolvimento poderia trazer para as vítimas a autonomia financeira, porque elas poderiam arranjar emprego e isso facilitaria a saída de casa e a quebra do vínculo com o agressor. Mas, às vezes, ele vem de uma forma desordenada. Vejo aqui muitas pessoas que estão desempregadas”, diz a primeira delegada da mulher daquela cidade, Julieta Japiassu, que nos primeiros dez meses de trabalho já tinha recebido em seu seu birô 126 queixas por ameaças e 45 por lesão corporal, a maioria envolvendo casais do próprio município.

Analfabeta e separada do arrimo da casa, Cileide criou os quatro filhos vendendo picolé na praia, depois montou uma banca na feira e, por fim, um fiteiro perto da estação ferroviária, onde está até hoje. Nunca lhe acometeu a ideia de vestir um macacão e bater ponto numa fábrica: “O único curso de solda aqui é pago. Se a mulher não tem dinheiro, tem de pedir ao marido, que muitas vezes não gosta. Quando ela chega lá, está aquela fila de homens. E ela ainda tem filhos para cuidar”.


A secretária executiva da Mulher do Cabo, Maria Tereza Claudina, está no cargo há cinco meses. Comerciante, nunca tinha militado na trincheira feminista ou participado de qualquer atividade ligada à causa. Admite não saber qual é o orçamento da pasta que comanda por indicação política. Sugere que as duas funcionárias da equipe do Centro de Referência da Mulher, que acompanham a entrevista, falem antes dela, mas resolve dar seu parecer sobre as queixas envolvendo mulheres à deriva da prosperidade: “Um pouco verdade. Chegaram pessoas de fora. As mulheres, no auge delas, são totalmente carentes. Elas necessitam… Como eu posso falar?”. É interrompida pela assistente social Dilza Sousa, que trabalha há mais de 20 anos atendendo vítimas de violência, que endossa todos os itens da pauta feminista na cidade, reconhece as precariedades do poder municipal e cobra uma participação das esferas estadual e federal, com quem compartilha as responsabilidades: “Precisamos ser vistos, precisamos que eles venham até nós. Enquanto isso não acontecer, a gente vai enxugar gelo”, afirma Dilza, que no ano passado acolheu 192 pessoas no centro, além de outras 62 no primeiro semestre de 2013, incluindo mulheres ameaçadas de morte.

Algumas delas vieram da região conhecida como Mercadão, espécie de playground noturno dos trabalhadores do Cabo, que agrega em torno de uma praça alguns bares, restaurantes populares, motéis baratos, um ponto de mototáxi e, por fim, um corredor paralelo de prostituição. Os programas começam cedo da noite, justamente para acompanhar o desembarque dos clientes de farda. Espontaneamente, M.A.S., 40 anos, surge com uma cara de poucos amigos e uma denúncia na ponta da língua contra supostas abordagens abusivas de policiais militares a garotas de programa, que ela alardeia sem ter como provar e sem exigir anonimato. Passou mais da metade da vida na prostituição (completou 25 anos de profissão neste ano) e cobra entre R$ 20 e R$ 30 por saída. “A turma de Suape ajuda porque a gente faz mais programas. Tem menina que faz 10  num dia”, relata M., que atua como representante informal de um grupo de 20 garotas, muitas recém-chegadas à maioridade.

Se as cifras da prostituição não costumam interessar ao debate envolvendo a cadeia produtiva criada por Suape, é na geração de empregos secundários que a ala de defesa encontra seu porto seguro. Estudo encomendado pelo Porto de Suape indica que entre 2000 e 2010 foram criados 112 mil postos no chamado território estratégico do complexo, com oito cidades. Desse total, coube à população feminina  31,3 % das vagas. Há três anos, considerando somente os pilares Cabo e Ipojuca, 23,6% da força de trabalho tinha funcionárias na ponta, cabendo aos homens mais de dois terços de tudo. Entre as mulheres empregadas nessas cidades, 31% trabalhavam em prefeituras, 15% na indústria e 17% no comércio.

Luciana Bezerra, 39, dona de uma barraca na praia de Gaibu há oito anos, deixou uma casa alugada em Fortaleza e migrou para um imóvel próprio perto do trabalho, comprado ao sabor do paladar e do bolso da clientela de turistas de veraneio ou de famílias locais que chegavam nos fins de semana. A faixa de areia, diz ela com lamento escancarado, agora tem novos donos. “Eles consomem pouco e afastaram as famílias porque muitos não respeitam, principalmente os (trabalhadores) baianos”. Na vizinha Ipojuca, Josefa Roberta Barbosa, a dona Zeza, 83, uma das moradoras mais antigas da cidade, tem a visão de quem acompanhou o lugar cambalear nas canetas dos prefeitos durante décadas a fio. “Melhorou muito. Antes, todo mundo dependia de prefeitura. Mulher e homem. Hoje é diferente”. Terezinha Soares, 60, cuidadora de dona Zeza, discorda da patroa. Ela teve que aceitar o bico provisório apenas para tapar buracos no orçamento familiar. A filha quer trabalhar, mas o genro não deixa. “Parece que todo mundo tem casa e tem carro. Para mim, piorou: não tenho trabalho, não sou aposentada e não tenho leitura”.

Às 11h35 de uma quinta-feira, Marli Santos, 38, ajudante de mecânica de uma montadora, já tinha almoçado. Aguardava o transporte de volta ao batente em uma sombra disputada do estacionamento do restaurante na beira de estrada. Teve pouco mais de cinco minutos para conversar sobre uma vida inteira, além de alguns segundos para ser fotografada, já aos gritos de uma colega: “Bora, Marli”. Na digestão a jato, a moradora do Cabo contou que não tinha sequer o primeiro grau quando entrou no porto pela primeira vez como ajudante de cozinha de uma empresa terceirizada. Passou para a área de serviços gerais e tomou gosto pelos estudos até conseguir terminar o segundo grau e engatar um curso de ajudante de mecânica. Contratada, era a única mulher do grupo do operários que em menos de 20 minutos voltaria a dar duro na linha de montagem de uma fábrica de máquinas industriais. Marli também tinha pressa — provocada pelo calor infernal agravado por uma farda cinza de tecido grosso ou pela pressão do relógio. Uma dúvida que o número do celular — sempre fora de área — que ela balbuciou subindo o micro-ônibus não ajudou a desvendar. O veículo tinha todas as janelas fechadas, como queriam as feministas, os engravatados da Petrobras e os gestores que ela sequer conhece. Mas só por causa do ar-condicionado.


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